24/10/2010

O Capitalismo: Risco ou Usura?

por Jorge Luis Rojas D'Onofrio

"Labour, therefore, is the real measure of the exchangeable value of all commodities" (O trabalho, portanto, é a medida real do valor de câmbio de todas as mercadorias) Adam Smith, A Riqueza das Nações

No sistema econômico atual é comum o intercâmbio entre empregadores e empregados. É habitual o intercâmbio de salário por trabalho. O empregador oferece o salário e o empregado oferece o trabalho; o empregador recebe o trabalho (ou o produto do trabalho) do empregado, enquanto que o empregado recebe o salário de parte do empregador. Porém quanto salário merece o empregado por seu trabalho? Quanto trabalho merece o empregador pelo salário que oferece? Qual é a relação justa entre o salário e o trabalho? Provavelmente, a maioria das pessoas coincide em que, se algo merecem possuir as pessoas, mais além do que se deve conceder às crianças e aos incapazes, é o produto de seu próprio trabalho. O pescador merece o peixe que obtém depois de sua jornada laboriosa. O camponês merece os grãos que colhe. Sem embargo, quando o empregaod e o empregador intercambiam trabalho por salário, o empregado não recebe todo o produto de seu trabalho, ao invés uma parte a recebe o empregador. Esse sistema não é muito diferente do sistema feudal, no qual o camponês cede boa parte da colheita, produto do seu trabalho, ao senhor feudal. Em uma indústria capitalista ocorre um processo similar, o salário do trabalhador não corresponde ao dinheiro da venda das manufaturas obtidas com seu trabalho, já que uma parte desse é destinada aos empregadores, os donos, os acionistas. Analisemos então os argumentos que poderiam justificar (falamos de justiça) os lucros do empregador.

Adam Smith em sua obra A Riqueza das Nações (cujo título original em inglês é "An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations") e que é considerada um dos grandes clássicos da ciência econômica, apresenta algumas justificativas para os lucros dos empregadores: "In exchanging the complete manufacture either for money, for labour, or for other goods, over and above what may be sufficiente to pay the price of the materials, and the wages of the workmen, something must be given for the profits of the undertaker of the work who hazards his stocks on this adventure." (Ao intercambiar as manufaturas, quer seja por dinheiro, por trabalho ou por outros bens, acima do que seja suficiente para pagar o preço da matéria-prima e dos salários dos trabalhadores; algo deve dar-se à pessoa que empreende o projeto, que arrisca seu capital nessa aventura.)

A justificativa de Smith para os lucros do empregador se baseiam então no risco de destinar um capital a certa atividade, que aos olhos de Smith é uma "aventura". Smith corrige ademais a crença que algum de nós poderia ter, de que os lucros não são senão outro nome para o salário que, como trabalhador que dirige e coordena as atividades, merece o empregador: "The profits of stock, it may perhaps be thought, are only a different name for the wages of a particular sort of labour, the labour of inspection and direction. They are, however, altogether different, are regulated by quite sufficient principles, and bear no proportion to the quantity, the hardship, of the ingenuity of this supposed labour of inspection and direction. They are regulated altogether by the value of the stock employed, and are greater or smaller in proportion to the extent of this stock." (Pode chegar a pensar-se que os lucros não são mais do que outro nome que se dá ao salário de um trabalho particular; o trabalho de inspeção e direção. Sem embargo, os lucros são algo completamente diferente, são reguladas por princípios bastante distintos, e não são proporcionais à quantidade, a dureza, ou ao engenho desse suposto trabalho de inspeção e direção. Os lucros são regulados pelo valor do capital invertido, e são maiores ou menores em proporção à quantidade desse capital.)

Como Smith muito bem explica, os lucros não dependem do trabalho que realize o empregador, mas sim da quantidade de capital que investe. Hoje em dia o empregador pode inclusive contratar uma pessoa para que realize o trabalho de inspeção e direção, o qual recebe um salário como um empregado mais. A justificativa que existia nesse então e que existe na atualidade para os lucros do empregador, é o risco de colocar um capital à disposição dos empregados.

Quando o empregador coloca seu capital à disposição de seus empregados, o que está fazendo é emprestar-lhes o capital aos empregados; e quando recebe lucros mais além do capital que emprestou, em realidade está recebendo um juros, que é proporcional ao capital emprestado. Esse mecanismo é equivalente ao funcionamento de um banco. O banqueiro empresta dinheiro, e recebe mais dinheiro do que emprestou. A pessoa que pede o empréstimo recebe certa riqueza, porém deve devolver mais riqueza do que a que recebeu. Esse mecanismo, bastante habitual no sistema econômico atual, é de fato contrário ao sistema de ética da maioria das pessoas. Entre familiares e amigos, emprestar algo sob a condição de que se devolva mais do que o que se emprestou, é considerado um ato de avareza e excesso de egoísmo. A cobrança de juros aos empréstimos foi proibida em muitas sociedades do passado, assim como em muitas religiões, catalogando-a de usura.

Usura. (Do lat. usūra):

1. f. Juros que se leva pelo dinheiro ou o gênero no contrato de mútuo ou empréstimo.
2. f. Esse mesmo contrato.
3. f. Juros excessivo em um empréstimo.
4. f. Lucro, fruto, utilidade ou aumento que se tira de algo, especialmente quando é excessivo. (Fonte: Diccionario de la Real Academia Española)


A condição necessária

Temos visto que tanto no funcionamento de um banco como no de qualquer outra empresa capitalista, o empregador ou o banqueiro põe à disposição dos empregados e devedores, um capital. Porém por quê alguem pediria emprestado capital, se deverá devolver mais do que recebe? Não é melhor obter esse capital por conta própria? Uma pessoa pede capital emprestado devido a que não tem maneira de conseguir esse capital a tempo. A condição necessária para que os empréstimos (créditos) existam, a condição necessária para que os empregadores paguem um salário menor do que corresponde ao trabalho do empregado, a condição necessária para que o sistema capitalista funcione, para que os banqueiros e empregadores obtenham riqueza sem trabalhar, a condição é que existam pessoas que careçam do capital que necessitam. Se as pessoas tivessem dinheiro suficiente não pediriam emprestado, e o banqueiro não receberia dinheiro sem trabalhar; se os camponeses possuíssem a terra que necessitam para cultivar, não dariam nada ao terratenente que não trabalha; se os operários possuíssem a maquinaria e a matéria-prima que necessitam para produzir manufaturas, o patrão não receberia parte da riqueza produto do trabalho dos empregados, sem trabalhar ele mesmo. Não estamos em realidade, ante uma chantagem? Se eu me aproveito da necessidade de alguém para exigir-lhe algo que de outra forma essa pessoa não aceitaria, essa pessoa está aceitando o trato sob coerção, isso não é, por acaso, equivalente a uma chantagem? Chame-se usura, chantagem, coerção, exploração ou "favor" interessado, a pergunta que logicamente os defensores da justiça devem fazer-se é a seguinte: Existe uma alternativa? Pode realizar-se alguma empresa exitosa sem recorrer aos que possuem o capital e só estão dispostos a emprestá-lo cobrando juros, sabendo que as pessoas comuns carecem da quantidade de capital suficiente? Mais adiante trataremos de responder a essa pergunta.

Porém por quê existem pessoas que carecem de capital e outras que não carecem de capital? as palavras de smith são eloquentes ao dizer que os lucros do empregador são proporcionais ao capital investido. Logicamente, se os lucros são proporcionais ao capital, enquanto mais capital possua uma pessoa mais lucros obterá, então terá mais capital para investir, e ainda maiores serão os seus lucros. A únical limitação a esse círculo de enriquecimento é o tamanho do mercado e a quantidade de mão-de-obra, já que chegará um momento no qual não haverá suficientes compradores para osp rodutos, ou não haverá suficientes empregados. Isso explica o porquê uma pequena diferença no capital das pessoas pode transformar-se em uma enorme diferença de capital em um tempo relativamente curto. Aquelas pessoas que por alguma ou outra razão possuem menos capital, recorrem às pessoas que possuem mais, e no intercâmbio, a pessoa que possui mais capital passa a possuir ainda mais enquanto que a que possui menos passa a ter uma dívida. O por quê de existirem pequenas diferenças de capital pode ter muitas razões, os defensores do sistema preferem falar unicamente das diferenças que são produto do mérito das pessoas, no caso de que tenham sido mais trabalhadoras ou mais engenhosas, porém não pode descartar-se o fato de que muitas vezes, e me atrevo a dizer que a maioria das vezes, essas diferenças são produto do azar, da especulação, do açambarcamento, do roubo, das guerras, de heranças... Ainda assim essas pequenas diferenças são resultado do mérito das pessoas, isso justifica que as diferenças aumentem com base na carência de outros seres humanos?


O suposto risco


É inegável que existem riscos ao momento de empreender qualquer atividade produtiva. Existe o risco de elaborar um produto que ninguém queira comprar, existe o risco de que o capital investido seja roubado, danificado ou desperdiçado. Porém esse risco justifica os lucros dos empregadores e banqueiros? O risco não é compartilhado muitas vezes pelos empregados e devedores? Na prática o quão arriscado é emprestar dinheiro a uma pessoa que, se não o devolver, será perseguida pela justiça? Qual é o risco de um terratenente que empresta sua terra para o cultivo, de que a terra desapareça?

Se o lucro serve para compensar o risco de quem investe seu capital, então, a longo prazo, o lucro equivaleria às perdas ocasionadas pelos investimentos desafortunados, inevitáveis quando existe certo risco. A longo prazo o investidor manteria a mesma quantidade de capital, e o juro só serviria para compensar as perdas imprevistas. A partir desse raciocínio é evidente que, no sistema atual, os lucros e os juros são muito maiores do que o que seria justificado pelos riscos, quer dizer, muito maiores do quê o necessário para fazer frente a perdas imprevistas, já que esses não produziriam a gigantesca acumulação de capital que ocorre no sistema capitalista. Os lucros e o juro não são uma compensação do risco do investidor, mas sim são o resultado de um sistema onde as pessoas que carecem do capital necessário se veem obrigadas a vender seu trabalho por um preço injusto, e onde um grupo de pessoas aproveita a necessidade de outras para exigir-lhes uma parte da riqueza que produzem com seu trabalho.


Existe outra maneira?


Os defensores desse sistema argúem que se não houvesse juros, o possuidor do capital não teria nenhuma motivação para emprestá-lo, quer dizer, não teria nenhum interesse em emprestá-lo. Então, argumentam, não seria possível por em marcha nenhuma empresa de médias ou grandes proporções, pois para isso é necessário que as pessoas que possuem muito capital acumulado estejam dispostas a investi-lo. Daí que essas pessoas sustentam que o investimento privado é essencial para o desenvolvimento de uma sociedade, e qualquer restrição ou situação que afugente o investimento privado, representa um obstáculo para o desenvolvimento. Para reforçar essa ideia existem as listas de "Risco-País" e de "Competitividade" em que os países com maiores restrições à exploração, e onde portanto os investidores privadores tem menos interesse em investir, são qualificados negativamente. Porém em realidade, desde muito tempo as pessoas tem utilizado outros mecanismos para ter a sua disposição o capital que não possuem de maneira individual. Em lugar de recorrer às pessoas que acumulam capital, e que só estão dispostas a emprestá-lo cobrando juros, várias pessoas com um capital limitado, podem agrupar seus capitais e pô-lo à disposição de quem o necessite sem cobrar juros (ou cobrando juros suficientemente baixos que estejam efetivamente justificados pelo risco ou por custos administrativos). O devedor deve simplesmente pagar o que recebeu, nem mais nem menos, e os credores simplesmente tem a segurança de que, à hora de necessitá-lo, eles também receberão o empréstimo e não deverão pagar juros. Esse mecanismo é geralmente chamado uma Mutualidade. Em uma mutualidade ou mutual, várias pessoas aportam uma parte do capital que possuem e o capital agrupado é utilizado para empreender alguma atividade ou simplesmente para ajudar a alguma das pessoas em caso de uma emergência. Qualquer obra pública funciona sob esse mesmo princípio. Um imposto pode ser visto como o aporte de capital que cada pessoa realiza; enquanto que as obras públicas podem ser vistas como o capital que será utilizado por essas pessoas caso necessitem. Uma rua é uma obra financiada pela soma dos aportes de muitas pessoas. Quando uma pessoa transita pela rua o quê faz é tomar emprestado o capital de muitos, durante o tempo em que transita por dita rua. A pessoa não para nenhum juros, já que ao terminar de transitar pela rua terá devolvido o capital que recebeu emprestado, nem mais, nem menos. Aquelas pessoas que financiaram com seus impostos a construção da rua tem a segurança de saber que, quando o necessitem, poderão transitar por dita rua, quer dizer, poderão tomar emprestado o capital e somente deverão devolvê-lo sem pagar quaisquer juros extras (a menos que danifiquem dito capital). Este sistema pode, e isso é bastante evidente, financiar obras e empresas de grandes proporções, sob a condição de poderem administrar com justiça os aportes das pessoas. É por isso que o investimento público é muito mais justo que o investimento privado, já que pode estar isenta da usura que parece inevitável no investimento privado, se bem que subsistem uns poucos investimentos privados sem finalidade lucrativa.

Sem embargo um sistema que não recorra ao investimento privado dificilmente pode funcionar se os capitais escassos são controlados por entes privados. A terra e as matérias-primas são capitais que não podem ser fabricados com o trabalho das pessoas. Enquanto uma casa é o produto do trabalho das pessoas que a construíram, a terra sobre a qual se constroi e as matérias-primas utilizadas em sua construção pré-existem na natureza, razão pela qual não é justo que sejam possuídas por um particular, mais ainda quando são escassas. Se toda a terra é controlada por terratenentes, o camponês não poderá evitar vender seu trabaho por um salário injusto, já que não poderá sobreviver sem a terra. Um operário poderia conseguir o capital necessário se for financiado por entes públicos ou mutualidades porém se a matéria-prima é controlada por privados, será difícil evitar ser explorado. É por isso que a terra e as matérias-primas devem ser repartidas equitativamente, se abundantes, ou democrativamente, se escassas. A água, os alimentos e os remédios são outro exemplo de algo que, caso sejam possuídos por um ente privado, pode-se obrigar às pessoas que careçam deles a venderem seu trabalho a preços extremamente injustos. A sociedade só pode ter a segurança de que a exploração seja evitada, se é ela quem controla esses capitais estratégicos.

A Justiça social requer lutar para que a água, os alimentos, os remédios, a terra e as matérias-primas sejam bens de domínio público, e para que pessoas sejam justamente retribuídas por seu trabalho. Essa outra maneira, na qual a sociedade controla os meios de produção e as pessoas são retribuídas de maneira justa por seu trabalho; essa outra maneira, na qual as pessoas não se veem obrigadas a vender seu trabalho por um salário injusto, nem a vender sua dignidade, nem seu sexo, nem suas ideias; essa outra maneira se chama Socialismo.


Tradução por Raphael Machado