27/11/2011

Por uma Interpretação Antropo-Ontológica do Pensamento Nietzscheano

por Alejandro Felix Raimundo



Neste trabalho tenta-se estabelecer uma relação entre a antropologia filosófica de Arnold Gehlen e a filosofia de Nietzsche. À luz da mesma é possível interpretar o pensamento nietzscheano desde um ponto de vista antropo-ontológico. A metodologia a seguir neste artigo consistirá em pôr em manifesto as semelhanças entre Nietzsche e Gehlen ao mesmo tempo que a importância que tem as considerações antropológicas dentro do conjunto da obra nietzscheana.

Em primeiro lugar há que dizer que foi o próprio Gehlen o primeiro em assinalar Nietzsche como um dos antecedentes de sua concepção antropológica, como assim também a possibilidade de interpretar as categorias fundamentais do pensamento nietzscheano desde a concepção deficitária do homem, como prova o seguinte parágrafo:

"...no mero 'existir' poderia estar realizando-se uma tarefa de uma importância infinita e cujo mandamento (essencialmente incognoscível porque nós somos esse mandamento) somente poderia aludir-se simbólicamente. A idéia nietzscheana do eterno retorno (que nunca foi realmente entendida), do eterno retorno, da vontade de poder, encontram aqui sua localização. Tomadas ao pé da letra possuem escasso sentido e são somente apêndices da filosofia de Schopenhauer e do darwinismo. Para ele eram símbolos que caracterizavam de algum modo um 'plus de vida' e queriam determinar mais concretamente essa obrigação indeterminada".

Não cabe dúvida de que Gehlen propõe uma maneira peculiar de ler Nietzsche. Neste trabalho tentar-se-á demonstrar a existência de um núcleo básico de coincidências entre ambos autores, ainda que evitar-se-á fazer uma análise minuciosa do pensamento de Gehler por entender que o mesmo excede as possibilidades de um trabalho desta extensão.
A tarefa consistirá em mostrar a conexão existente entre alguns pontos fundamentais dos pensamentos de um e outro.

1 - A Primazia da Práxis

Em Der Mensch - Seine Natur und seine Stellung in der Welt (1940) encontramos uma antropologia filosófica pura, uma concepção da essência do homem cujos conceitos são muito específicos e somente aplicaveis a seu objeto de estudo. O ponto de partida desta concepção é a tese nietzscheana de que o homem é "o animal não fixado". Gehlen diz que isso significa duas coisas: por um lado que não há nenhuma explicação do que seja o homem e por outro lado que o ser humano está inacabado, que não está estabelecido com firmeza.

Gehlen apresenta-nos o ser humano como um ser práxico, quer dizer como um ser que atua, trata, negocia, e que, por sobre todas as coisas, deve dar uma interpretação de si mesmo. Gehlen apresenta o homem como um projeto único da natureza que contradiz a tendência geral da evolução, a qual vai no sentido de uma crescente especialização, quer dizer de adaptar os organismos a um meio ambiente formado por uma série de não-especializações que desde o ponto de vista biológico constituem "primitivismos".

Gehlen entende que apesar de a concepção deficitária do homem ter sido intuída, e inclusive desenvolvida por muitos autores, nenhum foi capaz de captar o verdadeiro lacance da mesma. Isto deve-se a que não foi visto o princípio da descarga (Entlastung), o qual consiste na capacidade típica do homem de transformar suas carências características em oportunidades de prolongação da vida. O pensamento básico de Der Mensch é o seguinte: "...as carências da constituição humana (carências que representam um enorme gravame de sua capacidade de viver sob condições por assim dizer animais) são transformadas pelo homem, por si mesmo e com a ação em meios de sua existência, conjugando-se assim em último termo o destino do homem à ação e sua incomparável situação especial".

Todas as funções da vida humana, como por exemplo a linguagem, a fantasia, as pulsões, etc, são para Gehlen manifestações desta condição fundamental do ser humano: a de ser uma tarefa para si mesmo. Isso deixa assentada definitivamente a primazia da práxis vital sobre toda forma de conhecimento ao tempo que evita o recurso a categorias metafísicas para explicar a existência humana, como por exemplo as que veem a diferença entre o homem e o animal no espírito. Já no que concerne a este ponto é possível advertir uma significativa coincidência entre Nietzsche e Gehlen, devido a que também em Nietzsche encontramos um permanente esforço por apresentar todas as categorias do conhecimento (inclusive aquelas que aparecem como mais abstratas) como um resultado da particular organização vital do ser humano. A respeito resulta significativa sua afirmação de que: "...não existe em absoluto um mundo verdadeiro, por conseguinte há uma aparência perspectivística cuja origem encontra-se em nós (na medida em que temos necessidade de um mundo mais estreito, simplificado, contínuo)." Nietzsche considera que o conhecimento somente é possível como vontade de ilusão, como vontade de poder, já que o conhecimento é impossível no devir devido à natureza caótica, informulável, contraditória deste.

O conhecimento é visto por Nietzsche como um produto da humana necessidade, se nos atemos a sua afirmação de que:

"...essa necessidade de formar conceitos, espécies, formas, fins, leis - um mundo de casos idênticos - não deve-se compreender no sentido de que nós seríamos capazes de fixar um mundo verdadeiro; senão enquanto necessidade de preparar um mundo onde nossa existência seja possível, nós criamos deste modo um mundo calculável, simplificado, compreensível".

Para Nietzsche as categorias de sujeito, objeto, substância, espírito, etc, são ficções lógicas resultantes das condições de existência do ser humano. Neste ponto já resulta possível ver uma marcada afinidade entre seu pensamento e o de Gehlen, já que em ambos encontramos um perspectivismo antropocêntrico que põe de manifesto constantemente a relação existente entre a práxis que caracteriza a existência humana e as categorias mediante as quais o homem interpreta sua existência. Também encontramos em ambos uma preocupação em pôr de manifesto a relação existente entre os fenômenos corpóreos e as manifestações espirituais da existência huamana; porém já neste ponto pode-se advertir uma diferença enter ambos, já que enquanto em Nietzsche o corpo é visto como o fundamental, em Gehlen encontramos uma lei estrutural que está na base de todos os atos que o ser humano realiza, quer seja estes físicos ou psíquicos.
2 - Uma revisão do conceito nietzscheano do corpo desde a perspectiva da condição deficitária do homem

Nietzsche considera essencial tomar o corpo como ponto de partida de todas as análises e considerá-lo como fio condutor. Ele é o fenômeno mais rico, e o que permite o mais claro exame. Isso não significa que haja em Nietzsche um imediatiasmo, uma adesão imediata aos sentidos e ao corpo, como muitos já pensaram, mas sim que o corpo, enquanto constitui o assento da vontade de poder, resulta ser o fio condutor que permite a Nietzsche levar a cabo sua "filosofia do martelo", sua tarefa desconstrutiva dos cimentos sobre os quais apoiavam-se a ética e a filosofia do Ocidente, como por exemplo a tese sobre a autonomia do espírito. Esta tese não somente parece-lhe equívoca, senão também perniciosa para a vida. Em um aforisma de Aurora que leva por título justamente "o preconceito do espírito puro", adverte-nos que:

"Onde quer que haja reinado a doutrina da 'espiritualidade pura', destruiu-se, por seus excessos, a força nervosa, produzia almas sombrias, rígidas e oprimidas, que ademais acreditavam conhecer a causa deste sentimento de miséria e esperaval poder suprimir esta causa: 'É preciso que ela seja encontrada no corpo!' Está ainda muito florescente, assim pensavem!, enquanto que na realidade o corpo, por suas dores, não cessava de elevar-se contra o contínuo desprezo que era-lhe demonstrado...seu sistema alcançava seu apogeu quando consideravam o êxtase como ponto culminante da vida e como pedra de toque para condenar todo o terreno".

O mesmo pensamento aparece expressado no conhecido aforismo de Assim Falou Zaratustra que leva por título "Dos Desprezadores do Corpo". No mesmo Nietzsche afirma que o corpo é a grande razão, a serviço da qual trabalha a pequena razão, à qual os desprezadores do corpo chamam "espírito".
Nietzsche considera que o corpo tem suas próprias valorações, as quais não somente antecedem às valorações conscientes senão que também as determinam. As valorações surgem de nossas condições de existência ou da crença que temos nelas, em caso de que qualquer destas duas coisas modifique-se nossas valorações também terão que fazê-lo, portanto, as valorações não são exclusivas do ser humano, senão que a capacidade de escolher o mais importante, o mais útil, ou o mais urgente está presente em todos os seres vivos é mais o fato mesmo de estar vivo já implica a necessidade de valorar.

A prioridade do corpo sobre o espírito resulta em Nietzsche tão marcada que em Para Além do Bem e do Mal emprega imagens corpóreas para referir-se ao espírito, quando diz que "aquilo a que mais se parece o espírito é a um estômago". Resulta induvidável que Nietzsche, ao mesmo tempo que nega à consciência, à razão, e ao espírito toda existência autônoma, proporciona uma nova imagem do corpo, o qual aparece como determinante, como o lugar originário da experiência humana. Esta nova imagem do corpo com a qual o filósofo maneja, permite-lhe desenvolver uma tarefa crítica que constitui uma verdadeira fisiologia do conhecimento a qual já aparece em A Origem da Tragédia e mantem-se como uma constante presença durante todas as etapas de seu pensamento, até alcançar sua máxima expressão nos fragmentos póstumos.

É necessário esclarecer que esta fisiologia do conhecimento não representa de modo algum uma adesão de Nietzsche ao paradigma mecanicista. Nietzsche não pretende explicar a atividade da consciência valendo-se do princípio de causalidade, senão enfocando-a desde uma perspectiva vitalista que vê ao mundo como um conjunto de centros de força e resistência em permanente luta entre si. Acaso o exemplo mais concludente do que esta fisiologia do conhecimento representa seja o seguinte aforisma:

"...a distinção e transferência lógicas como critério da verdade ('verdadeiro é aquilo que é percebido clara e dinstintamente' - Descartes): com isso faz-se desejável e verossímil a hipótese mecanicista do mundo [...]de onde sabe-se que a verdadeira conformação das coisas está em conformidade com nosso intelecto? Não será diferente? Que a hipótese que dá-lhe em nível máximo a sensação de poder e segurança é preferida, apreciada, e consequentemente designada como verdadeira por ele? - O intelecto coloca seu poder e capacidade mais livre e mais forte como critério do mais valioso, portanto do verdadeiro [...]os graus máximos no desempenho despertam, com referência ao objeto, a crença em sua realidade, a sensação de força, de resistência, persuade de que há algo a que oferece-se resistência".

É preciso assinalar uma coincidência fundamental entre Nietzsche e Gehlen: ambos pensam que o instinto mais básico; o que está na base de todo fazer e querer é, justamente por sê-lo, o menos reconhecido, pois na prática acolhemos sempre seu mandato. Esta coincidência fundamental não deve fazer com que percamos de vista, não obstante, uma diferença não menos importante: Nietzsche leva a cabo uma inversão do ponto de vista dominante na filosofia ocidental, o qual vía nas idéias, o pensamento, ou o espírito, ao mais próprio do ser humano; Gehlen, entretanto, abre uma nova perspectiva que mostra a conexão existente entre a inferioridade e a exterioridade do ser humano, sem conceder prioridade a nenhum dos termos da relação. Podemos ver no pensamento de Nietzsche uma antecipação da antropologia de Gehlen, porém não podemos perder de vista que Gehlen, diferentemente de Nietzsche, não reage contra uma tradição filosófica, mas sim inaugura uma nova forma de pensar, capaz de arrojar luz sobre todos os aspectos da existência do homem sem dar prioridade a nenhum deles.



3 - A experiência do dionisíaco como manifestação da condição humana

Até agora assinalaram-se uma série de pontos de contato bastante notórios entre os pensamentos de Nietzsche e Gehlen; porém é possível assinalar coincidências muito mais significativas entre ambos autores. Um bom ponto de partida para esta tarefa pode encontrar-se na tentativa de interpretar desde a condição deficitária humana a problemática do dionisíaco em Nietzsche. A tese que terá de defender-se é a seguinte: a ambígua situação existencial caracterizada ao mesmo tempo pelo desgarramento e pela exubereância que a figura de Dionísio representa guarda muitos pontos de contato com a condição humana, tal como esta foi interpretada por Arnold Gehlen. Já em A Origem da Tragédia, o dionisíaco pode ser entendido como um conceito com o qual alude-se a uma atitude fundamentalmente afirmativa perante a existência. Esta atitude contrapõe-se à atitude reativa que caracteriza o ideal ascético. O dionisíaco vem assim a opor-se não somente às religiões reativas que negam a afirmação da vida, mas também à ciência moderna que, na opinião de Nietzsche, tem no pensamento de Sócrates sua primeira manifestação.

O pessimismo dos fortes que encontramos em A Origem da Tragédia representa um dizer sim à vida tendo plena consciência dos aspectos mais terríveis e dolorosos desta. Esta atitude que encontramos em Nietzsche é, em seus traços essenciais, bastante semelhante à que Gehlen expressa por meio da categoria de "obrigação indeterminada", a mesma expressa a necessidade de afirmar a vida em toda circunstância, recorrendo para isso aos meios que considerem-se necessários, os quais não estão determinados de antemão, mas ao invés dependem da interpretação que dê o homem de sua própria vida. A mesma conjunção de carências e superávil pulsional que observa Gehlen no ser humano é expressado por Nietzsche com sua tematização do dionisíaco; a nudez própria de Dionísio corresponde-se plenamente com a indeterminação essencial da vida humana; e nas diversas epifanias do Deus pode-se encontrar um símbolo da plasticidade característica da vida humana.

Também resulta importante ter em conta a observação nietzscheana de que Dionísio sente uma grande afinidade pelos seres humanos; já que assim como este Deus representa na ordem do divino uma forma de vida sumamente particular; o homem representa uma forma de vida atípica, um projeto único da natureza, essa é a razão fundamental da afinidade existente entre os homens e este Deus. Porém a esta razão há que somar outra, não menos importante que a anterior: "Dionísio é o Deus do inacabado nascimento", segundo a expressão de Maria Zambrano, e nisto também é possível assinalar uma coincidência com a condição deficitária do homem em Gehlen, já que este autor toma como pont ode partida de sua antropologia, a idéia de que o homem é um ser inacabado que constitui uma tarefa para si mesmo.

Aprofundando um pouco mais na análise é possível encontrar coincidências ainda mais sutis entre Nietzsche e Gehlen; assim, por exemplo, o fato de que o autor de A Origem da Tragédia expôs em dito livro uma questão que também vai ser tematizada por Gehlen em Der Mensch: a relativa à determinação do significado que adquire a moral desde o ponto de vista da vida. Nietzsche advertiu a existência de um conceito propriamente grego da moral, o qual opõe-se à moral predominante no Ocidente, a qual vê ao ato maligno como uma consequência da má vontade porém não logrou, nem em A Origem da Tragédia, nem em nenhuma de suas obras posteriores, dar uma explicação satisfatória do modo no qual relaciona-se a moral com o conjunto das relações humanas, em virtude que que faltava-lhe, precisamente, uma categoria como a lei da descarga de Gehlen, uma categoria capaz de atrevessar todas as operações humanas. Na obra de Gehlen, por sua vez, sim podemos ver uma resposta convincente a esta questão, a qual pode encontrar-se para citar só dois exemplos, nas páginas 75-76 de Der Mensch, e no capítulo 9 de Moral und Hypermoral.

O próprio Nietzsche deixa aberta a possibilidade de interpretar a religião dionisíaca desde o ponto de vista antropológico, quando em Para Além do Bem e do Mal menciona a simpatia que Dionísio tem pelos seres humanos, ao mesmo tempo que a possibilidade de que os Deuses tomem aos homens como medida, em virtude de que "nós os homens somos mais humanos". Se aceitamos a possibilidade de interpretar o dionisíaco desde o ponto de vista antropológico, podemos pensar também que a antropologia de Gehlen é a mais adequada a este propósito, em virtude das já assinaladas coincidências entre Nietzsche e Gehlen, e de outro fato cuja importância não pode subestimar-se: o fato de que ambos tiveram no pensamento de Herder um poderoso motivo de inspiração.

4 - A filosofia de Nietzsche como uma metafísica antropo-ontológica

As críticas que Nietzsche formula contra as noções que tem dominado a história da ética e da metafísica ocidentais compreendem-se melhor se tem-se em conta que em Nietzsche encontramos uma crítica demolidora da noção apofântica de verdade. Não há, diz o filósofo "...espírito, nem razão, nem pensamento, nem consciência, nem alma, nem vontade, nem verdade, todas são ficções inservíveis. Não trata-se de 'sujeito' e 'objeto', senão de uma determinada espécie animal que somente prospera sob uma certa exatidão relativa e, acima de tudo, regularidade de suas percepções (de modo tal que possa capitalizar a experiência)".

O intelecto não tem, na opinião de Nietzsche, outro valor que não seja o meramente antropológico, por isso recorda-nos: "quão lamentável, sombrio, e efêmero, sem fins e abstratamente, encontra-se o intelecto dentro da natureza. Houve eternidades durante as quais não existiu, quando desapareça, nada haver-se-á perdido, pois nosso intelecto não tem missão ulterior fora da vida humana, é puramente humano, e somente seu possuidor e gerador toma-lhe pateticamente como se fosse o eixo do mundo".

Nietzsche manifesta que na base de todos os conceitos, leis, espécies, formas, e fins com os quais lidamos está nossa necessidade de preparar um mundo no qual nossa existência resulte possível. Não existe uma distinção entre um mundo verdadeiro e um aparente, senão uma distinção entre o mundo fenomênico e o mundo informe e informulável do caos das sensações. O mundo dos fenômenos é o resultado da interpretação que o homem faz do devir valendo-se das categorias da lógica e da metafísica, as quais são o produto de suas necessidades vitais. Esta circunstância faz possível pensar que em Nietzsche encontramos uma continuação da metafísica da finitude que teve seu ponto de partida em Kant. Em efeito, também para Nietzsche vai ser impossível um conhecimento que não esteja intermediado por nossas categorias. A novidade do aporte nietzscheano é a idéia de que também o sujeito é uma ficção resultante das condições de existência do ser humano e não uma estrutura a priori que constitua uma condição de possibilidade da experiência, como ocorria no caso de Kant.

O mundo é interpretado por Nietzsche como um conjunto de centros de força e resistência, como um conjunto de quantum de poder, e o conhecimento é um produto mais da interação (ação e reação) entre esses centros de poder. As condições vitais nas que cada ser vivo desenvolve-se, determinam o tipo de conhecimento que este vai experimentar. O homem também forma parte desses quantum de poder, e, portanto, é um ser perspectivístico; porém, lamentavelmente, pretende conferir a seu próprio ponto de vista o caráter da objetividade. A confusão produziu-se porque:

Em vez de ver na lógica e nas categorias da razão, meios para a disposição do mundo com fins de utilidade ("inicialmente" pois para um falseamento útil) acreditou ter nelas o critério da verdade, ou bem da realidade. O "critério da verdade" foi, de fato, simplesmente a utilidade de um tal sistema de falseamento por princípio; e dado que um gênero animal não conhece nada mais importante que conservar-se, poder-se-ia falar aqui efetivamente de "verdade", a ingenuidade consistiu em tomar a idiossincrasia antropocêntrica como medida das coisas.

De acordo com o que Nietzsche expressa, a lucidez consistiria em tomar consciência da impossibilidade de refundar nossa própria perspectiva. Em tal sentido, o perspectivismo do autor deveria conduzir necessariamente ao antropocentrismo. Não obstante, neste ponto de vista adverte-se uma tensão no pensamento de Nietzsche, se nos atemos a sua afirmação de que: 

"...a vontade de poder é o que dirige também ao mundo inorgânico, não pode-se eliminar o 'efeito a distância', algo atrai outra coisa, algo sente-se atraído, esse é o fato fundamental".

A vontade de poder, enquanto é apresentada aqui como a força que está na base de todo acontecer, resulta um conceito muito forte, ainda quando não tem um significado ontológico. A ambiguidade está dada pelo fato de que Nietzsche confere à vontade de poder muita importância, ao mesmo tempo que nega a relação de correspondência entre os conceitos e a realidade. A pergunta que impõe-se é: Qual é o critério para medir o valor dos conceitos e categorias dos quais Nietzsche vale-se? Uma possível resposta a esta questão pode encontrar-se nas seguintes quatro teses:
1 - Todo ser vivo é perspectivístico, isto equivale a dizer que organiza sua vida de acordo com suas próprias valorações, as quais estão determinadas por suas necessidades biológicas e pelo horizonte vital no qual se move.

2 - O homem, devido a sua particular organização vital, esquece que é também um ser perspectivístico, e absolutiza sua própria experiência vital.

3 - Nietzsche, mediante um procedimento que se absteve de confessar, porém que não é outro que a reflexão, logrou pôr em descoberto a falácia que representa tal maneira de raciocinar.

4 - Esse esclarecimento das condições de existência de nossa própria espécie que leva a cabo a consciência crítica por meio da reflexão, funda a possibilidade de um pensamento de índole antropo-ontológica, original e insólita.

Ao longo de toda sua obra, Nietzsche realiza um labor genealógico com o qual põe em descoberto os impulsos que constituem a base da religião, da ética, e da metafísica. A tese que aqui defende-se é que o produto final dessa tarefa é uma metafísica que tem, como já antecipara-se, uma estrutura antropo-ontológica.

A fim de não cair em um reducionismo, há que dizer que o perspectivismo, a impossibilidade de sair do plano da interpretação e transcender o jogo das máscaras faz que em Nietzsche não haja qualquer conceito transparente. Essa é a razão pela qual o homem mesmo tem que ser visto como uma interpretação. Nos fragmentos póstumos o filósofo diz-nos que o que designamos como a palavra 'homem' é: "...uma pluralidade de forças que encontram-se em uma hierarquia [...] o conceito 'indivíduo' é errado. Estes seres não existem isoladamente, o que mais pesa, aquilo em que recai a ênfase é algo mutante, a constante produção de células, etc, deriva em um câmbio constante do número desses seres..."

O "homem" é para Nitzsche uma ficção na medida em que é um conceito que utiliza-se para referir-se a uma realidade múltipla. Para o filósofo o ser humano é um ser de conteúdo múltiplo através do qual põem-se em movimento enormes forças. O fato de que a perspeciva antropológica resulte privilegiada deve-se somente ao fato de que não podemos refundá-la, em virtude de que é nossa perspectiva; a idéia que Nietzsche propõe-nos é que: "há que assumir todos os movimentos, todos os 'fenômenos', todas as 'leis' como sintomas de um acontecer interior e servir-se até o final dessa analogia".

O homem também forma parte do jogo de máscaras ao qual reduz-se o conhecimento no contexto de da filosofia do "como se"; "homem" é definitivamente um conceito para referir-se a uma multiplicidade que, como tal resulta inexprimível por meio da linguagem, isto equivale a dizer que também a palavra "homem" é uma máscara. Aqui parece apresentar-se uma aporía, em virtude de que o lugar desde o qual julga-se acerca do valor das ficções (o homem) é também uma ficção; porém dita aporía desaparece se tem-se em conta o seguinte: ainda no contexto da filosofia do "como se", ainda respeitando a paixão nietzscheana pela simulação, é necessário ter um critério para avaliar; e parece possível afirmar que o mesmo encontra-se na tomada de consciência acerca da perspectiva desde a qual o ser humana interpreta o devir.

Ainda quando evite-se chegar a uma conclusão definitiva a respeito do pensamento de Nietzsche, ainda quando adote-se o pensamento do caminho e da demora provisória, é preciso que os conceitos ponham-se em movimento; e para isso é necessário que haja um princípio que ative-os. Se a obra de Nietzsche não é uma sucessão de críticas e argumentos carentes de unidade, é preciso que a tarefa que Nietzsche leva a cabo com o fim de dessacralizar as certezas mais arraigadas da metafísica e da ética faça-se desde um lugar determinado. Neste trabalho afirma-se que dito lugar existe, e que encontra-se na perspectiva de nossa própria espécie, ainda quando a mesma deva também ser sujeia a crítica, tarefa que somente pode ser levada a cabo por meio da reflexão.