18/01/2013

Escolasticismo, Protestantismo e Modernidade

por Paul Gottfried



O protestantismo emergiu com a queda do escolasticismo, e o protestantismo, por sua vez, levou ao fim da hierarquia e à ascensão do individualismo.

Um derivado curioso, mas significativo, da Reforma Protestante foi o suporte moral para o que se tornou a modernidade burguesa. Essa conexão é particularmente notável na medida em que os reformadores Martinho Lutero e João Calvino buscavam restaurar uma comunidade cristã, e não construir uma nova civilização. O que eles consideravam objetável na igreja medieval não era seu tradicionalismo, mas seu caráter pagão e não-bíblico. Eles atacaram a tentativa dos filósofos católicos Albertus Magnus (1200-1280) e Tomás de Aquino (1225-1274) de importar a filosofia aristotélico no que deveria ser um Cristianismo baseado na Bíblia.

Os reformadores objetavam à visão escolástica de que as pessoas, apesar do Pecado Original, poderiam melhorar seu caráter através do esforço moral. De fato, eles insistiam na prisão da vontade ao estado natural de devassidão do homem, uma condição que só poderia ser melhorada pela infusão de graça divina. E essa graça era dada não em resposta à exerção humana mas como um trabalho exterior (opus extrinsecum) pelo qual seres caídos só poderiam esperar e orar. Apesar de que essa compreensão fatalista da redenção subjazia a teologia de Calvino mais explicitamente do que a de Lutero, ela não obstante estava presente em ambos. Uma concepção radical da pecaminosidade humana, parcialmente derivada de Santo Agostinho, permeava o pensamento da Reforma. A absoluta corrupção humana necessitava de uma forma dramática de redenção divina, a qual cada indivíduo tinha que experimentar para saber que ele foi salvo.



Escolasticismo e Racionalismo Moderno

De algumas maneiras o pensamento escolástico característico das universidades européias nos séculos XII e XIII parece mais próximo do racionalismo moderno do que a teologia reformista. Os estudiosos acreditavam que o bem era cognoscível através da razão correta, que o conhecimento sobre a existência de Deus era acessível ao entendimento humana, e que a retórica e filosofia pagãs eram apropriadas para a educação dos cristãos. Ainda que os estudiosos medievais não negassem a doutrina do Pecado Original ou a necessidade de graça para se mover em direção a uma vida cristã, eles consideravam os sacramentos e a instrução da igreja suficientes para este fim. O pecado de Adão não destruiu irreparavelmente o caráter humano, mas uma vez lavado com o batismo, o pecado inato não nos impediria de desenvolver nossas capacidades morais, pelo aprendizado e por hábitos úteis.

Compreensivelmente, críticos do pensamento escolástico, que alcançaram sua maior influência ao final do século XIII, acusavam seus adversários de tendências pagãs e racionalistas. Desde místicos franciscanos como São Bonaventura passando por filósofos nominalistas nos séculos XIV e XV até os grandes pensadores da Reforma, a crítica era ouvida de que os escolásticos minimizavam a experiência da fé e atribuíam importância excessiva ao raciocínio teológico. Ainda que Tomás de Aquino, por exemplo, tenha defendido na Summa Theologica que a crença em Deus pode resultar puramente da fé (credibilia), ele não obstante também forneceu cinco provas da existência de Deus, uma das quais derivava da física aristotélica. Como outros escolásticos, o Aquinate insistia que "o filósofo" poderia levar os cristãos a algumas, senão a todas as verdades teológicas.

Ainda mais importante para a história da ética, o Aquinate e outros escolásticos relacionavam regras de conduta a raciocínio moral. Deus como fonte de todo ser, como sublinhado na "Exposition super librum Boethii", fornecia tanto cognição natural (lumen naturale) como revelação sobrenatural (lumen supernaturale). Cada qual tornada disponível para esclarecer a verdade divina, e pela operação da razão universal bem como pela moralidade bíblica, os humanos eram capazes de formar decisões éticas apropriadas, fora bem como dentro de uma sociedade cristã. Ademais, apesar da queda de Adão, tanto os mundos social como natural davam evidência de uma ordem (ordo mundi) que apontava para um Autor divino. Seguindo a noção aristotélica de desígnio, o Aquinate insistia que o mundo era inteligível aos nossos intelectos porque ambos eram produto de uma Razão divina. As mentes humanas treinadas para pensar poderiam aplicar a "razão correta" a questões morais, chegar a "juízos prudentes" em relação ao bem social, e apreender a interrelação do mundo físico.

Apesar do aparente ponto de entrada que alguns encontraram aqui em direção a uma cultura moderna, científica e racionalista, há qualificações que tem de ser feitas antes de se assumir que tais ligações existem. Como o pensador social alemão Ernst Troeltsch explica em Protestantismo e Progresso, a visão-de-mundo escolástica mais plenamente articulada por Tomás de Aquino estava inextricavelmente ligada à sociedade medieval. Ela assumia graduações e uma ordem de autoridade caracterizada por hierarquias eclesiásticas e temporais, ambas as quais eram vistas como necessárias para o bem-estar humano. A ordo tomística não era uma coleção de indivíduos em busca de verdades divinas e racionais. Ela era mantida unida por relações sociais orgânicas baseadas em status. O temporal servia ao eclesiástico, o laborador físico ao contemplativo, e o cavaleiro a seu senhor.

Transações econômicas, como outras transações sociais, eram fixadas em termos de desígnio hierárquico percebido como presente por toda a criação. O comércio devia ser regulado por seu propósito designado, satisfazer necessidades materiais específicas: Ele devia ser praticado em acordo com um "preço justo" que poderia ser calculado em relação a fatores de custo, mas que proibia a cobrança de juros (prodesse faenore).



A Desconstrução do Escolasticismo

O que aconteceu no Ocidente pós-escolástico culminando na Reforma foi a progressiva desconstrução dessa perspectiva escolástica. Particularmente nos tratados nominalistas do monge franciscano de Oxford Guilherme de Ockham (1280-1349), cujo pensamento marcou Lutero e outros reformadores protestantes, a ordo escolástica é sujeita a uma crítica impiedosa. Para nominalistas como Ockham, não há síntese harmônica entre razão e fé, nem correspondência necessária entre a mente de Deus e a ordem social. Se proposições religiosas ou preceitos éticos eram tidos como verdadeiros, era necessários aceitá-los com base na fé. Pois a razão crítica, mantinha Ockham, estava ali para desafiar e desacreditar verdades recebidas, e a realidade incondicional que os escolásticos haviam atribuído à justiça, à bondade e a outros ideais aos quais eles apelavam eram meramente nomes (nomina) atribuídos aos objetos de nossa percepção.

O próprio Deus, como conceitualizado pelos nominalistas, era essencialmente vontade absoluta. Aquelas leis ou regularidades pelas quais Ele controlava a criação eram produtos de volição divina. O que era percebido como verdades racionais ou morais, segundo Ockham, fluíam de sua vontade. Mas aqui, também, era necessário aceitar a possibilidade de que o que era pensado como sendo certo acabaria sendo um figmento de nossas mentes após ulterior exame. O pensamento nominalista encorajava tanto como a fé na medida em que pressupunha um abismo entre verdade divina e razão humana.

A Reforma acrescentou a esse escolasticismo desconstruído dois elementos críticos, uma teologia positiva e ensinos sociais implícitos que eram incompatíveis com a ordem tomístico-aristotélica. Se inspirando na Carta de São Paulo aos Romanos, Lutero e Calvino ambos proclamaram que os cristãos são justificados pela fé, independentemente de qualquer obra ou sacramento. Nem era a razão essencial para esse processo na medida em que o crente é salvo da danação tão somente pela fé, como a certeza interior da eleição divina. Essa visão reformista da vida cristã, como uma tentativa de encontrar evidência de favor divino desde dentro, foi condutiva à modernização de maneiras que não poderiam ter sido completamente compreendidas no século XVI.

O Ataque do Protestantismo à Hierarquia

Olhando para o efeito modernizador do protestantismo ao longo de um período de séculos, o teólogo presbiteriano e pensador político James Kurth observa (Orbis, Primavera 1998): "Todas as religiões são únicas, mas o protestantismo é mais única do que todas as outras. Nenhuma é tão crítica da hierarquia e da comunidade, ou das tradições e costumes que as acompanham".

Já nos escritos germinais de Lutero como reformista em 1520-21 eram afirmadas ideias protestantes que trariam consequências sociais cataclísmicas. O "sacerdócio de todos os crentes", o repúdio de uma diferença espiritual entre clero e leigo, a necessidade para cada indivíduo de desenvolver um relacionamento pessoal com Cristo, a irrelevância da estrutura sacramental e legal da igreja em conquistar a salvação, a igual santidade de todas as vocações honradas, e a demanda de que todos os cristãos tenham acesso à Bíblia como palavra proferida por Deus eram mais do que posturas religiosas. Eram pontos de afastamento para uma transformação social e cultural. Independentemente do quanto Lutero haja se oposto à desobediência social e tenha denunciado uma revolta camponesa na Alemanha que citava sua obra, a Reforma foi, como contrarrevolucionários católicos posteriores a descreveram, um convite a nivelar por baixo. Ou, como Jaime I da Inglaterra respondeu a uma sugestão de que os presbiterianos tivessem permissão de formar a igreja oficial na Inglaterra, "sem bispo sem rei".

Mas a revolução promovida pelo pensamento protestante não levou a revolução permanente. Ao invés, o protestantismo contribuiu para a civilização burguesa a partir da qual repúblicas constitucionais, monarquias limitadas e economias de livre-mercado todas emergiram, direta ou indiretamente. Inúmeros estudiosos exploraram essa relação, e uma distinção a ser feita entre elas é entre aqueles que falam em consequências não-intencionais e os que não falam. Claramente na primeira categoria está o grande sociólogo alemão Max Weber, que em 1983 examinou a conexão entre a teologia moral calvinista e o "espírito capitalista". Segundo Weber, calvinistas não partiram para acumular riqueza ou para reinvesti-la em busca de lucro. Eles se dirigiram nessa direção porque sua busca por sinais da graça divina, junto com sua crença na igual dignidade de todas as vocações, os predispôs às atividades bancárias e comerciais. Ao servir Deus desinteressadamente em seu trabalho e prosperando, eles eram capazes de se convencer de sua graça predestinada. E ao invés de praticar a disciplina monástica, como em culturas católicas, os calvinistas levaram hábitos ascéticos a papeis burgueses, vivendo de modo abstêmio e cultivando a ética de trabalho protestante.

Protestantismo e Subjetivismo

Contra essa visão de consequência não-intencional, outros tem afirmado que os protestantes estabeleceram as bases da sociedade moderna mais deliberadamente. Assim Hegel afirmou que os protestantes criaram uma consciência moderna ao enfatizar a "subjetividade" encontrada no Novo Testamento. Ainda que a auto-consciência individual tenha sempre estado presente enquanto valor naquele texto, as condições históricas não favoreciam sua emergência como valor religioso dominante até o século XVI.

Mais recentemente, o historiador social Benjamin Nelson ligou os primórdios do capitalismo bancário à rejeição da proibição hebraica à cobrança de juros. Nelson encontra essa visão enfaticamente afirmada nos Institutos de Calvino e apresenta Calvino como o primeiro exegeta bíblico a distinguir investimento comercial de empréstimos feitos aos despossuídos. Era apenas o segundo, Calvino observou, que estava proibido em Deuteronômio. Em uma nota similar, Troeltsch havia já comentado na abertura da sociedade à atividade comercial causada pelo ataque protestante à cristandade medieval. Não o resultado de qualquer reinterpretação teológica singular, essa mudança ocorreu por causa de um ataque geral à visão-de-mundo cristã-aristotélica e à hierarquia sacramental que ela sustentava.

Em um estudo detalhado das consequências não-intencionais do protestantismo, Weber notou a visão modificada da natureza e do trabalho produzidas pela Reforma, particularmente pela educação calvinista dos próprios ancestrais franceses de Weber. A busca calvinista por sinais da eleição divina, mantinha Weber, não só nutria a psicologia e a prática do capitalismo como reforçava a crença de que o mundo existia tão somente para o eleito, que poderia tanto compreender como explorar a natureza e a sociedade. Weber via o racionalismo e o secularismo como duas consequências da teologia moral calvinista. Confrontando um mundo divinamente criado que, segundo o Gênese, estava colocado à disposição da humanidade, e esperando relacionar aquele mundo às próprias experiências espirituais pessoais, o calvinista, segundo Weber, tentava fazer com que o mundo exterior se adequasse às suas próprias necessidades como um dos eleitos. O observador calvinista não sentia qualquer senso de mistério na presença da natureza, mas ao invés a via mais como algo a ser dominado na glorificação de Deus e elevando sua própria certeza de salvação.

Ademais, a ênfase protestante na leitura e discussão da Bíblia não levou ao desprezo pela análise intelectual demonstrada por Lutero quando ele se referiu à Razão como a "Prostituta do Diabo". Ao contrário, o biblicismo protestante contribuiu para a alfabetização das massas e para o surgimento de igrejas democraticamente organizadas que definiriam suas próprias doutrinas. Uma opinião frequentemente ouvida entre historiadores é que os russos jamais passaram pela modernização política, porque eles jamais experimentaram ou foram significativamente influenciados pela Reforma Protestante. Essa opinião parece consideravelmente plausível quando se olha para os resultados não-intencionais bem como para os intencionais desse desenvolvimento.



Um Impulso de Mudança

Por outro lado, pode ser afirmado que o protestantismo incluía um impulso de mudança que agora pode ser difícil de deter. Em A Sociologia da Religião, Weber explorou esse problema quase há cem anos. As forças criadas ou intensificadas pela Reforma que resultaram em uma sociedade comercial burguesa continuariam a promover a mudança, nem toda ela favorável aos beneficiários de uma antiga cultura protestante. A exploração de uma natureza desmistificada, a transição da vida religiosa da comunidade para o indivíduo, e uma suspeita geral em relação a hierarquia eventualmente levou a uma direção hostil às instituições burguesas.

Tudo isso, pode-se concluir, de fato veio a se passar nas sociedades protestantes, como se pode inferir da desintegração da família, do culto à tecnologia, e da ascensão das burocracias e estados modernos como planejadoras e provedoras das famílias. Tais observações devem ser qualificadas apontado para o fato de que os reformadores protestantes teriam ficado horrorizados com essa situação tanto quanto os escolásticos medievais. Até recentemente os protestantes enfatizavam rigor moral e a virtude familiar pelo menos com tanta força quanto os católicos. Mas as sociedades protestantes eram menos orgânicas, enquanto a moralidade protestante centrava mais nos indivíduos do que nas famílias e na comunidade. E a visão do crente de sua vida como o "progresso do peregrino", para usar o nome do mais importante clássico protestante, ajudou a dar origem a uma doutrina especificamente moderna de progresso, associada com a subjugação da natureza e a difusão de conhecimento moral e técnico. O mundo protestante passou de ser um teste do eleito a um objeto material com o qual se sente livro para manipular.

Face a essas consequências protestantes não-intencionais, os filósofos católicos Nicholas Capaldi e Nino Lingiulli fizeram a irônica observação de que católicos americanos étnicos podem estar mais próximos do protestantismo burguês do que quaisquer outros. Tendo absorvido atitudes protestantes como resultado de americanização, os camponeses católicos que vieram para os Estados Unidos - e mais ainda os seus descendentes - assumiram valores distintamente ocidentais. A ética de trabalho calvinista, uma religiosidade mais individual e interior do que aquela presente entre seus ancestrais, e o desconforto com as formalidades do culto católico são todas características desses católicos protestantizados. Mas diferentemente dos membros da cultura majoritária protestante, tais católicos ainda não abandonaram completamente seu senso comunal - nem sua fascinação com as virtudes burguesas.

Ainda assim, é possível imaginar por quanto tempo essa insulação católica americana vai durar. Se o caráter católico latino e eslavo dos imigrantes americanos pôde ser modificado uma vez, por características protestantes, porque o mesmo processo não poderia continuar? Por que deveriam aqueles que foram expostos e absorveram parte da cultura protestante resistir a ela em sua fase radicalizada tardia? Similarmente, por que deveriam milhões de asiáticos que se converteram ao protestantismo e usualmente representam uma forma vitoriana austera dele permanecer embebidos nessa forma particular? Por que não deveriam presbiterianos e metodistas chineses e coreanos ser sobrepujados pelas forças que já sobrepujaram o protestantismo ocidental? Defasagens culturais são superadas - e nem sempre para melhor.