18/09/2013

Alain de Benoist - Autoridade Espiritual & Poder Temporal

por Alain de Benoist



Três autores considerados como representantes notáveis do "pensamento tradicionalista" voltaram sua atenção para essa questão doutrinária. Em 1929, René Guénon lançou uma obra chamada Autorité spirituelle et pouvoir temporal publicada por J. Vrin. Nesse mesmo ano, Julius Evola o respondeu com um artigo portando o mesmo título que apareceu na publicação italiana Krur. Finalmente, em 1942, Ananda K. Coomaraswamy publicou um ensaio que abordou o mesmo tema, ainda que ele haja confinado seus comentários a seu contexto indiano, chamado: Poder Espiritual e Autoridade Temporal na Teoria Indiana de Governo. É digno comparar as três perspectivas porque, ainda que todos os três jactem-se de uma idêntica fonte de inspiração, eles chegam a conclusões tangivelmente distintas.

Guénon, nos passos de muitos outros, observa que a história, como o mito, constantemente apresenta uma oposição ou rivalidade entre poderes espiritual e temporal. Na Índia antiga, essa oposição colocava brâmanes de ksatriyas, i.e., os sacerdotes e os guerreiros, em oposição. Essa oposição aparece novamente na sociedade celta com a rivalidade simbólica entre javali e urso (Merlim e Artur nos contos da Távola Redonda). Na Europa Medieval, ela forma a estrutura para o conflito entre o Sacerdócio e o Império. Esse conflito, Guénon escreve, "invariavelmente se passa da mesma maneira: nós vemos os guerreiros, os portadores do poder temporal, após inicialmente se submeterem à autoridade espiritual, se erguerem contra ela e se declararem independentes de qualquer instância superior, ou mesmo buscar subordinar essa autoridade que originalmente havia sido reconhecida como portadora legítima do poder e convertê-la em um instrumento que serve a sua dominação".

Pelo termo "autoridade espiritual", Guénon não quer dizer simples autoridade religiosa. Em relação à função real, simbolizada pelas balanças e pela espada, que inclui atividade marcial e militar, mas também atividade administrativa, judicial e governamental, a autoridade espiritual pode ser definida como o que aparece primeiro e principalmente como "conhecimento de princípios, livre de qualquer aplicação contingente". Isso dá ao sacerdócio a função essencial da "preservação e transmissão da doutrina tradicional, em que toda organização social regular encontra seus princípios fundamentais" - e é essa doutrina que possui um caráter literalmente sagrado. Entre espiritual e temporal há portanto a mesma distância que separa autoridade e poder; enquanto esta se manifesta externamente, com recurso a meios externos, aquela é por essência interna e só se afirma por si mesma.

Uma distância similar separa conhecimento e potência, ou mesmo pensamento e ação. O brâmane representa o caminho contemplativo (jnanamarga). Na ordem das gunas - as qualidades constitutivas dos entes apreendidos em suas manifestações - ele primariamente possui sattva, que é sabedoria, intelectualismo, e soberania vindo da conformidade à essência pura. Assim o rei representa o caminho ativo (karmamarga) e é caracterizado por rajas, que é o impulso de expansão e energias em excesso. O resultado dessa distinção é que a função real-guerreira precisa estar subordinada à função sacerdotal, assim como a potência deve estar subordinada ao conhecimento e a ação ao pensamento.

Como a Estrela Polar, o conhecimento representa um ponto fixo em meio ao movimento. Ele corresponde ao "motor imóvel" de Aristóteles. É transcendência oposta não tanto à imanência, quanto à contingência e mudança. "Mudança", Guénon sublinha, "seria impossível se não houvesse princípio desde o qual ela procede e que, por virtude do fato de que é seu princípio, não possa estar sob seu controle". O conhecimento, portanto, não possui necessidade de ação para adquirir posse dos princípios, em outras palavras, da verdade, enquanto a ação seria sem sentido a não ser que seja empregada como resultado de princípios que são necessariamente externos a ela (se eles não fossem e fossem assim sujeitos a contingências, eles variariam sem cessar e não mais seriam princípios). Em outras palavras, o conhecimento domina a ação, porque ela fornece à ação a sua lei. E da mesma forma, o poder temporal, estando completamente sujeito às vicissitudes do contingente, só pode estar subordinado à autoridade espiritual, fundada no conhecimento dos princípios, aquela autoridade que em retorno confere sobre ele uma legitimidade derivada de sua conformidade aos princípios que refletem a "ordem das coisas".

A dependência do poder temporal sobre o sacerdócio é revelada, por exemplo, na coroação de reis. Reis não são plenamente legítimos até que eles tenham recebido investidura sacerdotal, que até mesmo confere poderes sobrenaturais sobre eles (tais como os poderes taumatúrgicos dos reis franceses, que Guénon afirma serem conferidos sobre eles não pela herança do ofício, mas claramente da coração).

A inversão da relação entre conhecimento e ação, como expressa principalmente em todas as formas de voluntarismo ativo ou "prometeísmo", ou mesmo na crença de que as idéias são reflexos de práticas sócio-históricas e não o contrário, é assim considerada pelo pensamento tradicionalista como uma aberração total. Essa aberração é similar à "usurpação da supremacia pelo poder temporal", quando ele reivindica se emancipar da autoridade espiritual pela declaração de que não há domínio superior ao seu próprio. Como ele é incapaz de encontrar um princípio legitimador em si mesmo, ele apenas fornece o exemplo de uma atitude de revolta que por contágio inevitavelmente levará, passo a passo, a sua própria queda. Guénon cita aqui o caso dos reis franceses, que, começando com Felipe o Belo, incessantemente buscaram fazer de si mesmos independentes da autoridade espiritual, o que os levou a depender do apoio da burguesia e do poder econômico nascente, que por sua vez eventualmente os derrubaria. Como Guénon explica:

"Se poderia dizer que os ksatriyas, uma vez que tenham entrado em um estado de revolta, se degradam de alguma maneira e perdem o seu caráter específico para assumir o de uma casta inferior. Se poderia inclusive acrescentar que essa degradação deve inevitavelmente ser acompanhada pela perda de legitimidade (...). Se o rei não mais está satisfeito em ser o primeiro dos ksatriyas, em outras palavras o líder dos nobres, e desempenhar o papel de 'regulador' que pertence a esse título, ele perde sua razão de existir e, ao mesmo tempo, ele se coloca em posição de oposição àquela nobreza da qual ele era apenas a emanação e a expressão mais plena. É assim como podemos ver a monarquia, de modo a 'centralizar' e absorver em si os poderes que pertencem coletivamente à nobreza como um todo, travar batalha com a classe nobre e impiedosamente labutar para destruir o feudalismo, desde o qual, porém, ela emergiu. Ademais, ela só pode fazer isso confiando no terceiro estado, que corresponde aos vaishyas; e é por isso que também vemos, começando precisamente com Felipe o Belo, os reis franceses quase constantemente cercados por membros da burguesia, especialmente aqueles que, como Luís XI e Luís IV, levaram a tarefa da 'centralização' mais longe, do que burguesia necessariamente colheria os benefícios depois quando assumiria o poder com a Revolução".

Guénon depois diz, "A revolução que derrubou a monarquia é tanto sua consequência lógica como sua punição, sendo sua recompensa pela revolta dessa mesma monarquia contra a autoridade espiritual".

Na fase seguinte, o temporal nem mesmo afirma se impor sobre o espiritual, mas radicalmente se separa dele e até mesmo nega sua existência. A despossessão sistemática do superior pelo inferior, dá início a um processo que levará ainda mais pra baixo. As castas inferiores conseguem sobrepujar os ksatriyas; a atividade econômica sobrepuja a autoridade política; e as vantagens e lucros pessoais prevalecem sobre o bem comum. O reino do capitalismo burguês portanto corresponde à era dos vaishyas e a do bolchevismo à era dos sudras. Em paralelo a isso, a usurpação inicial dá início ao processo de atomização social que leva ao individualismo moderno. É claro, para Guénon, essa involução é parte de uma visão tradicional de história cíclica caracterizada espiritualidade minguante e "materialização" crescente, em que a era mais escura (a Kali Yuga), que corresponde à era atual, é dirigida tanto ao niilismo do caos e à inevitável regeneração final - inevitável porque cada tendência levada a seu extremo levará a sua própria inversão: "Como tudo que possui apenas uma existência negativa, a desordem destrói a si mesma".

Portanto Guénon recusava absolutamente a idéia de uma relação complementar entre o espiritual e o temporal dentro de uma função soberana. Esse ponto de vista, que ele chamava "insuficiente", mascara a necessária subordinação que deve existir entre os dois domínios. Por exemplo, ele via o fato de que o imperador romano era tanto imperator como pontifex romanus como uma "anomalia" que cheirava para ele como uma "usurpação". Isso o levou a finalmente adquirir a convicção de uma superioridade radical do Oriente (que sempre manteve a primazia do conhecimento sobre a ação) sobre o Ocidente (que tem sustentado a crença oposta, pelo menos desde o tempo da Renascença).



A opinião de Evola é completamente diferente. Evola na verdade reagiu violentamente contra o argumento de Guénon, dizendo que ele apenas expressava "o ponto de vista brahmânico-sacerdotal de um oriental" e que, por essa mesma razão, precisava "ser rejeitado como um todo". Esse argumento, ele disse, estava equivocado em relação à Tradição Ocidental. Ademais ele culminava em uma justificativa da facção guelfa em relação aos guibelinos, um tema em que Evola especificamente se declarou "adversário jurado" de Guénon.

A tese fundamental de Evola é a de que a ação possui uma natureza sagrada e que há um "significado espiritual da realeza", que Guénon intencionalmente deixa de levar em consideração, ainda que a própria noção de "rei do mundo" que ele havia estudado por conta própria demonstra que o simbolismo real pode ser diretamente conectado à forma mais alta de autoridade espiritual. O antagonismo que tem se expressado visivelmente desde tempos pré-históricos entre uma tradição guerreira ou real e uma tradição sacerdotal deveria portanto não ser vista como "uma luta entre a autoridade espiritual e um poder temporal rebelde", mas sim como "uma luta entre duas formas distintas de autoridade que são igualmente espirituais e ainda assim insuperáveis".

Evola sente ainda que Guénon cai no racionalismo quando ele insiste no valor absoluto dos "princípios" (a letra) mais do que nos "estados espirituais a se atingir" (o espírito), e que a oposição que ele traça entre conhecimento e ação é artificial em grande medida, já que a Tradição (e notavelmente a oriental) sempre ensinou que o conhecimento é uma forma de ação e realização superior, e que uma ação, quando ela é justa, vai além da ação que a manifesta. Adicionalmente, a idéia de que o pensamento é um "motor imóvel" não a tornaria uma modalidade de ação através da própria noção de "motor"? E não seria essa a razão pela qual o imperador romano, assim como o imperador chinês ou o faraó egípcio, fossem investidos com uma responsabilidade "religiosa" além da "real"? Na verdade, Evola acredita que Guénon confunde autoridade espiritual com autoridade sacerdotal. Essa é a razão pela qual ele se recusa a aceitar que "a consagração do rei ou chefe não possui o senso de uma subordinação à casta sacerdotal", mas que "através da consagração, o rei assume ao invés de receber poder - um poder de um tipo superior que o investe com uma influência espiritual". Finalmente, Evola, que foi fortemente influenciado pelas teorias de Bachofen sobre a "matriarquia primitiva", não se recrimina em ver a oposição "indiana" entre o rei e o brâhmane como um traço de um antigo antagonismo entre o princípio viril "nórdico-iraniano" e um princípio feminino ou gineocrático "sul-demetérico". Isso fortalece sua idéia de que, de alguma maneira, o rei sempre deveria ter a última palavra:

"O domínio das castas sacerdotais por uma tradição guerreira, a primazia da ação sobre a contemplação, não constituem por conta própria qualquer tipo de rebaixamento de nível; ao contrário é a perda de contato com a realidade metafísica que constitui isso - esteja ela manifesta na forma de uma materialização do conceito sagrado de realeza, que se tornou mero 'poder temporal', esteja ela manifesta na forma da decadência da função sacerdotal que degenerou em sobrevivências eclesiásticas, simplificações dogmáticas e simples 'religião'".

Evola vai adiante para concluir: "Não é na visão sacerdotal mas na imperial e guerreira - e pela reclamação da sapiência oculta que, na forma de Ars Regia, está ligada a ela e é perpetuada dentro do próprio coração do Ocidente - em que é apropriado buscar os símbolos de nossa afirmação e liberação".

Baseado em um conhecimento notável da Índia antiga, a perspectiva de Coomaraswamy encontra consonância, de uma forma mais acadêmica e talvez mais erudita, com a de Guénon em um número de pontos essenciais. Coomaraswamy, em particular, enfatiza a superioridade evidente do brâmane sobre o rei que existia na Índia. Simbolicamente, o brâmane é o ventre que dá origem ao ksatriya. O ksatriya pode oferecer sacrifício, mas apenas o brâmane pode oferecer e realizar sacrifício. Textos indianos também enfatizam que a monarquia não possui princípio em si mesma, mas é governada pela lei eterna do dharma, que é ação conforme a norma em oposição a artha, ação conforme interesses contingentes. De passagem, Coomaraswamy também criticou a posição de Evola, em que ele vê uma concessão ao mesmo "mundo moderno" que o autor italiano tanto atacou.

Mas ao mesmo tempo, Coomaraswamy enfatizou, desde o início de seu livro até o fim, a importância do "casamento" entre monarquia e sacerdócio. Toda a doutrina política indiana pode ser resumida, ele disse, no discurso "nupcial" dirigido pelo brâmane ao rei no Aitareya Brâhmana (VIII. 27). "Eu sou Aquilo, tu és Isso, eu sou os Céus, tu és a Terra". Essa frase na verdade é essencial. Por um lado, ela confirma que o rei, que é "macho" em relação a seu reino (pois a prosperidade de seu povo e a fertilidade da terra dependem dele), está em relação a seu "capelão", seu purohita, "do lado da terra", que simbolicamente significa do lado "natural" e "feminino". Por outro lado isso indica que a relação entre o sacerdócio (Brahma) e a realiza é tão rígida quanto um casamento, ela torna essa hierarquia relativa ao situá-la na perspectiva de uma "hierogamia". A união do brâmane e do rei na verdade ocorre na celebração do sacrifício da mesma maneira que Terra e Céu se unem no plano cósmico, ou, em uma sociedade tradicional, o homem e a mulher no plano sexual. Sua relação é portanto baseada em uma dependência assimétrica recíproca, simbolizada pelo fato de que o purohita às vezes caminha na frente do rei, para demonstrar claramente que ele não é seu súdito, e às vezes atrás dele para indicar que ele não obstante é dependente dele. "Enquanto, espiritualmente ou absolutamente, o sacerdote é superior", escreve Louis Dumont sobre esse tema, "ao mesmo tempo desde a perspectiva temporal ou material ele é subjugado e dependente. Inversamente a figura espiritualmente subordinada do rei é o mestre no plano material".

O Satapatha Brâhmana (IV. 1.4) especifica por outro lado que o purohita está para o rei como o pensamento está para a ação, e Mitra para Varuna. Na religião védica, Mitra (mas também Krishna, Agni e Brihaspati) na verdade representa o arquétipo da autoridade espiritual, assim como Varuna (mas também Arjuna e Indra) representa o poder temporal. Por exemplo, no Satapatha Brâhmana (IV. 1.4), é dito que Varuna (a Monarquia) não poderia subsistir apartado de Mitra (o Sacerdócio) e lhe disse: "Volta-ta para mim para que possamos nos unir; eu designo para ti a precedência; impelido por ti, eu realizarei feitos". O mesmo texto também indica que Mitra e Varuna são como homem e mulher: "Mitra ejaculou seu sêmen em Varuna" (S.B. II.4.4.19). Isso explica o paradoxo aparente que vê o elemento "masculino" como estando do lado do brâmane, apesar de seu caráter "passivo", e o elemento feminino do lado do rei, apesar de sua natureza guerreira. A "passividade" de Mitra é aquela do motor imóvel que é a lei dominante de toda ação. Daí o eloquente Mitrâvaruna sânscrito, "Mitra e Varuna combinados como casal", como se estivessemos na presença de uma pessoa "conjunta" aqui.

A correspondência analógica é portanto completa entre Mitra e Varuna, o brâmane e o rei, o dia e a noite, consciência e ação, Verdade e Palavra, o "conhecedor" (abhigantr) e o "fazedor" (katr), etc. Em cada caso, há uma clara hierarquia entre dois princípios, mas essa hierarquia é inseparável da união "nupcial" que revela uma unidade transcendental e produz sua própria superação. Aqui, é claro, encontramos outro exemplo do tema da identidade de opostos (coincidentia oppositorum). Nos textos antigos, a relação do brâmane e do rei é frequentemente representada pela imagem de gêmeos do sexo oposto ou mesmo cônjuges convocados a se unirem (Aitareya Brâhmana VIII.27). Igualmente revelado é o episódio do casamento de "Indragni" registrado no Satapatha Brâhmana (X.4.1.5), em que Agni (o Sacerdote) e Indra (o Rei) dizem um ao outro: "Enquanto formos assim, seremos incapazes de gerar prole. Façamos um par para que nos tornemos uma forma única". "Que a Autoridade Espiritual, o hieron de Platão, etc.," Coomaraswamy conclui, "é também o Governante, o arkhon de Platão assim como o brahma 'é tanto brahma como kshatra', significa de fato que o Poder Supremo é real assim como sacerdotal". Necessariamente para a formação do Soberano Perfeito, a união dos dois princípios é também o modelo para todo ser humano da conquista de sua autonomia. É na verdade o equivalente da fusão de complementariedades opostas, que corresponde à superação da condição humana e a instauração de um novo Regnum.



Em relação a Mitra e Varuna, Georges Dumézil escreve, "são os dois termos para o grande número de casais conceituais e antitéticos, cuja justaposição define dois planos. Cada ponto de um desses planos, se poderia dizer, convoca outro ponto similar no outro plano, e esses casais, diversos como são, possuem um certo parentesco que é tão claro que para cada novo casal adicionado aos arquivos, é fácil prever seguramente qual seria o termo 'mitriano' e qual o termo 'varuniano'". Como se pode ver, tanto Mitra como Varuna são na verdade igualmente necessários para o estabelecimento da rta, a ordem harmônica das sociedades humanas e do cosmo.

Em Roma, Júpiter é primeiro e principalmente um rei (rex). Ele controla o relâmpago como Zeus para os gregos (e como os deuses da segunda função, Indra e Thor entre indianos e germânicos respectivamente). Ele é assim uma contraparte de Varuna. A correspondência de Mitra seria Dius Fidius, uma divindade que foi rapidamente suplantada por uma abstração personificada, Fides. Na história mítica do povo romano, essa bipartição também pode ser encontrada no casal formado pelos dois primeiros reis: Rômulo (=Varuna) e Numa (=Mitra). Para os germânicos, Odin-Wotan é como Varuna o patrono da guerra e o mestre da magia: ele é aquele que saúda em Valhalla os guerreiros escolhidos. Tyr, uma divindade "mitraica" e que é a contraparte do védico Dyaus e do Zeus grego, é o deus dos contratos e patrono da assembléia, da thing. Levando em consideração a inclinação da primeira função na direção da função marcial, característica da religião germânica, ele foi distorcido no passado relativamente recente ao ponto de às vezes ser incorporado a Marte, enquanto o verdadeiro "Marte germânico", Thor, "deslizou" para a terceira função.

Em cada grande setor da área coberta pela expansão indo-européia, nós assim encontramos uma clara bipartição da função soberana, uma bipartição representada por duas divindades distintas que, por meio de um certo número de analogias simbólicas, mais especificamente promovem como um deus a autoridade espiritual e como outro o poder temporal. Essas duas divindades formam um par, e Dumézil está perfeitamente correto ao descrever a primeira função em falar de "duas faces, duas metades que são antitéticas, mas complementares e igualmente necessárias".

"Igualmente necessárias" mas não iguais. A divindade "mitraica" é na verdade normalmente percebida como relativamente superior à divindade "varuniana". Por outro lado - e é aqui que encontramos novamente o traçado de uma oposição entre autoridade espiritual e poder temporal - pode-se detectar, em uma fase que parece posterior cronologicamente falando e mais ou menos marcada de uma maneira segundo as "províncias" indo-européias, um tipo de obliteração do "lado mitraico". Assim como entre os germânicos, Tyr foi finalmente tornado subordinado a Odin-Wotan, entre os romanos, Dius Fidius sofreu com a reforma teológica de Júpiter (que coincidiu com a promoção desse deus e a criação de seu culto capitolino), ao ponto em que Júpiter o absorveu inteiramente. Na Índia finalmente, Mitra atraiu menos atenção dos poetas do que Varuna. Essa supressão precisa ser compreendida no contexto das "inevitabilidades da função marcial" (como Dumézil a descreve), que é naturalmente impelida a contestar pela primazia da função soberana. Os hinos em que Indra desafia Varuna e se gaba de abolir sua potência, similar ao Hàrbardhsjodh dos Eddas, que representa Thor insultando Odin, ambos prestam testemunho a isso de sua maneira particular - sem mencionar o exemplo romano relativo a impiedade do rei marcial Tullus Hostilius contra o qual Júpiter aplica sua justa vingança.

É sob a luz emitida por essas pistas que precisamos estudar o problema da realiza como concebida pelos indo-europeus. Como sabemos, essa instituição é bastante antiga como confirmado pela concordância clássica do védico *raj- (rajah), do celta *rig (-rix), e do latim *reg (rex). Desde o início, porém, a "questão real" (a relação das três funções e do rei) prova ser uma de grande complexidade. Dumézil expressou dessa maneira, "O rei é às vezes superior, pelo menos externamente, à estrutura trifuncional, em que a primeira função está então centrada na administração mais pura possível do sagrado pelo sacerdote, ao invés de no poder do soberano e seus agentes; às vezes o rei - rei-sacerdote em igual medida se não mais do que rei governante - é ao contrário, o representante mais eminente dessa função; às vezes ele demonstra uma mistura variável de elementos emprestados das três funções, mas notavelmente da segunda, e é dessa função e eventualmente da classe marcial de onde ele mais comumente emerge".

Que por razões "práticas", o rei é mais comumente um produto da classe militar não deveria ser de forma alguma surpreendente. Na Índia, a palavra râjanya, derivada de râjan, significando "rei" é um sinônimo para ksatriya. Os primeiros reis indo-europeus eram "eleitos", isso quer dizer escolhidos entre a família real ou entre os grandes senhores feudais por uma assembléia de homens livres. No caso de incompetência tal que sua legitimidade fosse perdida, o que quer dizer que eles não estavam buscando realizar "aqui embaixo" a harmonia que rege "no alto", eles podiam ser depostos (como o último rei merovíngio foi em 751) ou mesmo mortos. Isso não deve ser entendido como implicando que a função real era puramente e simplesmente militar em essência. O rex não pode ser resumido no dux, e é por isso que Dumézil, em outra passagem de sua obra, escreve que o rei mais comumente é "qualitativamente extraído" da segunda função, o que significa dizer que ao ascender à posição real ele passou a outra função, a da soberania. Agora, como nós já vimos, essa função é idealmente percebida como uma que inclui dois aspectos antitéticos mas complementares, um aspecto temporal e um aspecto espiritual. Assim há toda razão para pensar que, entre os indo-europeus, a realeza originalmente tinha um caráter sagrado, o rei (como era o caso na Suméria, no Egito, ou mesmo no Império Chinês) estando investido com prerrogativas "mágicas" ou religiosas ademais àquelas de natureza política.

Finalmente, nós ainda precisamos levar em consideração o fato de que distinções sociais nas sociedades antigas de origem indo-européias historicamente verificadas não correspondem sempre à tripartição ideal proposta por sua ideologia religiosa. A trifuncionalidade, devemos lembrar, é em primeiro lugar e primordialmente uma idéia. Ela é apenas potencialmente e secundariamente uma realidade social humana. E sua transposição social, quando ela ocorre, está sempre sujeita a ser distorcida. Entre os germânicos, por exemplo, a primeira função corresponde à nobreza, enquanto entre os celtas e indo-iranianos, ela corresponde exclusivamente aos sacerdotes (aqui os nobres ocupam a segunda classe). Isso obviamente levanta uma questão, já que a escolha do rei da classe guerreira mudará de significado dependendo de essa classe ocupar ou não o primeiro lugar. Mas isso então levanta a questão de saber se a separação da função real e da função sacerdotal foi originalmente indo-européia ou se, como Louis Dumont questionou sobre a Índia, resultava de "um processo que teria transcorrido durante o período védico", um processo durante o qual o rei "teria perdido na Índia suas prerrogativas religiosas". É difícil assumir qualquer tipo de posição firme nesse ponto. A ausência aparente da classe sacerdotal de povos indo-europeus "centrais" como os germânicos, que permanece em contraste à instituição bramânica na Índia, aos flamines de Roma, e aos druidas dos celtas, como o faz à natureza incontestavelmente "mágica" da realeza política da maioria desses povos, parece não obstante argumentar em favor da hipótese de Dumont. Segundo outros autores, porém, a classe sacerdotal só teria aparecido como classe distinta sequencialmente à necessidade de manter ou preservar a tradição e a identidade coletiva com uma força cada vez mais forte dentro de um ambiente humano cada vez mais heterogêneo (Jean Haudry).

Entre os germânicos, onde a classe sacerdotal parece inexistente, a instituição real assumiu um caráter sagrado uma vez que a realeza "wotânica" prevaleceu definitivamente sobre a antiga instituição "vânica" (que persistiu porém na Escandinávia até o século VII d.C.). A função real então se tornou aquela do "mago" e do "guerreiro"; o deus Wotan foi instaurado como ancestral da linhagem dinástica enquanto o novo nome do rei germânico, *kuningaz, foi substituído pelo nome anterior. Esse fenômeno parece ter tido lugar durante o início de nossa era histórica em conexão com a ascensão e difusão de bandos guerreiros e da expressão germânica do Völkerwanderung, que sucessivamente daria origem aos francos, lombardos, visigodos, vândalos, ostrogodos, burgúndios, saxões, e outros povos. Daí em diante o rei germânica era tanto o primeiro dos guerreiros e lordes (jarls) e um "mago" que atuava como intermediário entre seu povo e os deuses dos quais ele descendia. Ele possuía a ciência das runas e garantia a prosperidade de todo seu povo. "Uma revolução religiosa e institucional", escreve Jean-Paul Allard, "a emergência da realeza 'wotânica' definitivamente exaltou o rei, erguendo-o acima das contingências da segunda função, mas não o separando daquela classe. Ela conferia sobre ele uma natureza sagrada que ele não havia possuído anteriormente. Ele daí em diante possuiu um carisma essencialmente mágico de origem divina através da qual a realeza reforçava sua natureza indo-européia".



A instituição monárquica da Europa Ocidental foi herdada diretamente dessas migrações germânicas do século V d.C. "A realeza", escreve Georges Dumézil, "emerge do passado germânico, carregada por pessoas que Roma, para o bem ou para o mal, havia aceito em seu meio, sem subtrair nada do poder de seus líderes". Por trás da coloração superficial que a tradição cristã havia dado em referência aos "reis" do Antigo Testamento, a realeza medieval continua, em muitos sentidos, seja pelas insígnias simbólicas (colares, cetros, lanças, capas, e daí em diante), ou pelos poderes taumatúrgicos atribuídos aos reis "curandeiros" (a scrofula), a antiga realeza sagrada cujos poderes titulares eram conferidos por sua posse de habilidades incomuns.

O problema da relação entre autoridade espiritual e poder temporal se apresenta de maneira paralela e aguda em relação à famosa querela entre o Sacerdócio e o Império que deixou sua marca sobre séculos da história da Europa Ocidental. Nós temos um texto extremamente interessante sobre isso à nossa disposição. É uma carta endereçado ao Imperador pelo Papa Gelário I, em que o pontífice sobreano - que governou durante os últimos anos do século V, a era de Teodorico - expunha uma teoria ligeiramente notável das relações entre o papado e o imperador. Gelásio escreveu, "Há dois poderes, augusto Imperador, pelos quais esse mundo é majoritariamente governado, nomeadamente, a autoridade sagrada dos padres e o poder real. [...] Ainda assim em coisas divinas tu deves curvar tua cabeça humildemente perante os líderes do clero e esperar desde suas mãos os meios de tua salvação. [...] Os ministros da religião, reconhecendo a supremacia concedida a ti pelos céus em questões concernentes a ordem pública, obedecem a tuas leis".

Louis Dumont, que incluiu uma cópia do texto dessa carta em seu livro, a analisou como segue: "O sacerdote está portanto subordinado ao rei em questões mundanas que concernem a ordem pública. [...] Os sacerdotes são superiores, pois é apenas em um nível mais baixo que eles são inferiores. Nós não estamos lidando com uma mera 'correlação' (Morrison) ou a simples submissão de reis a sacerdotes (Ullmann), mas com uma complementariedade hierárquica". Dumont então segue dizendo, "Acontece que eu descobri a mesma configuração na Índia Védica antiga. Lá, os sacerdotes se viam como religiosamente ou absolutamente superiores aos reis, mas materialmente sujeitos a ele. Ainda que o fraseamento seja diferente, o arranjo espelha exatamente o arranjo descrito por Gelásio". Na verdade o que encontramos aqui é o delineamento mencionado antes: superior ao rei em questões espirituais, o sacerdote está abaixo dele no que concernem questões públicas, que em si são de menor importância que as primeiras. "Nós devemos entender Gelário", acrescenta Dumont, "como dizendo que, enquanto a Igreja está no Império para as questões mundanas, o Império está na Igreja no que concerne questões divinas". Em certos sentidos, essa orientação é um tipo de posição guibelina antes do fato. Se ela tivesse sido instituída de fato, a Europa teria sido poupada da dolorosa querela das Investiduras nascida da rivalidade entre Sacerdócio e Império.

Não foi este o caso. Começando em meados do século VIII, o papado adotou uma atitude que era radicalmente diferente da que foi sugerida por Gelásio. Ele buscou adquirir controle sobre a autoridade imperial, inclusive sobre questões mundanas. A diarquia hierárquica foi substituída por uma "monarquia espiritual" em que o espiritual era visto como superior ao temporal até para questões temporais. O Papa, a partir de então, possui todos os poderes, o que levanta a questão dos limites da autoridade imperial. A querela dos guelfos e guibelinos que se deu quatro séculos mais tarde, permitiria que essa questão fosse levantada publicamente.

Aludindo aos partidários do Império (os guibelinos do século XII, Guilherme de Occam, e Marcílio de Pádua no século XIV), Louis Dumont observa: "Os partidários do Império não negavam a superioridade essencial da Igreja, nem sua independência ou direito a soberania dentro de seu domínio, mas eles expunham a doutrina dos primeiros dias da Igreja e seu reconhecimento do sacerdotium e do imperium como duas esferas independentes instituídas pelo próprio Deus, dois poderes a coordenar [...]. Eles às vezes propunham uma relação sugestiva daquela no hinduísmo: O Estado deve se subordinar à Igreja em questões espirituais, a Igreja ao Estado em questões temporais". De uma maneira mais geral, os guibelinos afirmavam o caráter sagrado da autoridade temporal em continuidade com a herança da Roma antiga e da tradição européia mais pura. Mas na análise final, nem o Papa ou os guibelinos prevaleceram. A querela das Investiduras levaria à, pela rota do nascimento da secularização, separação dos poderes temporal e espiritual, uma modalidade muito distante da hierarquia unidimensional advogada por uns e da complementariedade e reciprocidade hierárquica buscada por outros.

A luz lançada pelo material precedente torna mais fácil ver como devemos avaliar as posições respectivas de Evola, Coomaraswamy e Guénon. Guénon está correto em enfatizar a superioridade da autoridade espiritual, mas ele está incorreto quando designa para ela a primazia absoluta, que o leva a interpretar a oposição brâmane/ksatriya desde o ângulo de uma luta pela posição superior, em outras palavras uma luta por poder. Ele não vê que a autoridade espiritual é superior apenas em seu próprio domínio, sendo inferior naquelas "coisas inferiores" conhecidas como questões públicas. Nem ele vê que o poder temporal em sociedades tradicionais também possui uma natureza intrinsecamente sagrada. Finalmente, ele não parece perceber que o brâmane e o rei formam uma dupla inseparável, característica de dois aspectos complementares que são um traço da soberania. Similarmente, sua interpretação linear não-dialética da relação entre pensamento e ação, contemplação e realização, conhecimento e poder, para além do fato de que ela é insuficiente para exaurir a análise da função soberana nas sociedades européias antigas, o leva a adotar uma perspectiva abertamente unidimensional e hierárquica, que não dá peso suficiente para o princípio da conciliação de opostos. Ainda que ele apenas mencione o caso da Índia, em relação ao tema em questão, Coomaraswamy enxerga melhor quando ele enfatiza o fato de que a primazia do Sacerdócio não é exclusiva de sua complementariedade estrutural com a Realeza, e enfatiza a importância do "casamento" dos dois princípios.

De sua parte, Evola corretamente sublinha o caráter intrinsecamente sagrado do poder real ou imperial. Por outro lado, ele está errado, caindo no erro oposto de Guénon, quando ele afirma a autoridade espiritual como inteiramente submissa ao poder temporal. No que concerne sua interpretação do poder sacerdotal como sendo essencialmente "feminino", a autoridade espiritual sendo de alguma forma uma relíquia de influência "gineocrática", não há como se dar consideração séria a isso tanto por causa da natureza dúbia da hipótese do matriarcado primitivo como também pelo simbolismo claramente "masculino" constantemente atribuído ao brâmane pelos textos indianos. Para Guénon, o rei não é nada além do mais elevado indivíduo entre nobres e guerreiros; ele é caracterizado apenas pela força, tanto quanto a sabedoria é a principal característica da função sacerdotal. Agora, enquanto é verdade  como vimos que o rei é normalmente um produto da classe militar e mantém relações privilegiadas com essa classe, sua função também lhe dá acesso a um nível qualitativamente diferente. Assim não é possível simplesmente reduzir a função real àquela do guerreiro.

É fácil ver que Guénon e Evola ambos tendem a sistematicamente confundir a função real e a função marcial, um para proclamá-la intrinsecamente inferior à função sacerdotal, o outro para proclamá-la superior ou pelo menos igual.

O poder temporal não deve ser imposto sobre a autoridade espiritual, mas esta não possui superioridade absoluta também. Os dois princípios estão inseparavelmente ligados dentro da mesma função soberana, sem esse elo servir para formar qualquer tipo de teocracia. A dupla formada dessa maneira deve ser interpretada desde o ângulo da dependência recíproca e do conflito de opostos. A autoridade espiritual e o poder temporal correspondem a orientações diferenciais dentro de uma complementariedade hierárquica de tendência unidimensional.