28/08/2015

Leonid Savin - Os Cinco Grandes, Segurança Eurasiática e Outros Projetos

por Leonid Savin



Nos idos de 2001, um importante analista da companhia bancária americana Goldman Sachs Group Inc., Jim O'Neill, usou o acrônimo BRIC para descrever as economias em desenvolvimento. Ainda que ele a tenha utilizado no contexto de um paradigma neoliberal global, a Rússia "cooptou" o termo, propondo ao Brasil, à Índia e à China construir uma cooperação multilateral. Em relativamente pouco tempo, muito foi feito para desenvolver mecanismos de interação. Posteriormente, a África do Sul se uniu aos quatro países (e o acrônimo BRICS nasceu).

Agora, os cinco países, que ocupam 26% da área territorial do planeta, representam 42% da população mundial e geram 27% do PIB mundial, são considerados como o novo ator coletivo do mundo multipolar, baseado no princípio da descentralização e na habilidade de responder aos desafios do século XXI. Como o vice-Ministro de Relações Exteriores russo Sergei Ryabkov, na sua coletiva de imprensa durante a Cúpula dos BRICS e da SCO em Ufa em 9 de julho de 2015, disse, "a prática dos BRICS não tem precedentes na política internacional", e o grupo de Estados tornou-se "um fator importante nas relações internacionais". Os BRICS estão se tornando gradativamente os novos "Oito Grandes", mas apenas na base da igualdade, da transparência e do consenso entre todos os membros.

A última cúpula em Ufa mostrou que o tom informal no qual a cooperação estava baseada não impediu a criação de uma associação internacional completa, mais democrática do que outras alianças do último século. Em Ufa, um plano para ações futuras foi aprovado - um tipo de sumário da matriz operacional dos BRICS para o futuro próximo. Ele inclui uma declaração de finalidades, a estratégia da parceria econômica e anuncia a abertura de um departamento virtual - o site oficial dos BRICS, que publicará documentos oficiais e materiais relevantes. O Banco dos BRICS foi inaugurado e uma reserva de ativos estrangeiros foi formada. Seu capital combinado é de 200 bilhões de dólares. Os primeiros projetos financiados ocorrerão na primavera de 2016, não limitados aos cinco países, mas possuindo caráter global. Essencialmente, é uma alternativa financeira ao FMI dos Rothschilds, fazendo investimentos em setores necessitados da economia real dos países, e não conduzindo transações especulativas ou fornecendo empréstimos onerosos, como o fazem bancos estrangeiros, mercados de capitais e fundos.

Também, entre os países dos BRICS a cooperação será reforçada em questões financeiras e econômicas. Particularmente, o diretor de Questões Europeias e Centro-Asiáticas Gui Congyou notou que a Rússia é uma prioridade para investimentos chineses, o que será feito não apenas em infraestrutura, mas na construção de casas baratas e em alta tecnologia também.

O ano da presidência russa dos BRICS tem sido muito dinâmico. Como o Presidente da Rússia Vladimir Putin disse em 9 de julho, "no ano da presidência russa nós conduzimos os primeiros encontros para fóruns civis, parlamentares e da juventude dos BRICS. A criação da Universidade de Rede dos Brics está em processo tanto quanto o estabelecimento do Conselho de Regiões de nossa organização".

Deve ser acrescentado que a cooperação está acontecendo agora não apenas nos campos financeiro e econômico do bloco: encontros ministeriais tem sido realizados para questões de saúde, educação, agricultura, impostos, ciência e tecnologia, seguridade social, comunicações, trabalho e emprego e cultura. A coordenação crescente entre os países afetou virtualmente todas as questões internacionais agudas, de conflitos regionais e ameaça do narcotráfico ao setor espacial e pirataria marítima. Para isso, todas as técnicas que podem tornar relações multilaterais burocráticas foram deliberadamente evitadas. Os líderes de todos os países dos BRICS concordaram com a opinião de que o atual formato antiburocrático deve ser mantido.

Isto indica o lado civil dos BRICS similarmente. A questão, abordada na Cúpula em Ufa, foi também discutida na véspera do fórum em Moscou com a participação de especialistas. Em particular, através do Conselho Empresarial dos BRICS muitos acordos foram feitos, enquanto líderes sindicais davam suas recomendações aos Chefes de Estado dos BRICS. O Presidente da Federação de Sindicatos Independentes da Rússia, Mikhail Shmakov, em uma reunião com Vladimir Putin, também assinalou a necessidade de evitar quaisquer métodos do neoliberalismo, que é o culpado por todas as crises globais atuais. Esta é uma observação importante mostrando que os BRICS estão em consenso a nível de ideologia política, um que guiará os países participantes.

Os BRICS também podem ser considerados como um clube em que os membros seguem o princípio da reciprocidade. o Primeiro-Ministro indiano Narendra Modi durante um encontro em formato maior de líderes dos BRICS indicou a importância de completar uma reforma na ONU e seu Conselho de Segurança. Segundo ele, isso ajudará a responder mais efetivamente a quaisquer chamados. Muito reveladora foi a afirmação do líder indiano sobre sanções - que apenas sanções da ONU tem qualquer poder, enquanto todo o resto é tentativa de alguns países de ditar seus termos, o que é inaceitável. Dilma Rousseff, Presidente do Brasil, também levantou a questão da reforma da ONU e da disponibilidade de participar em vários projetos da harmonização de fluxos migratórios ao controle de mudanças climáticas.

É significativo que outros países estão mostrando um interesse crescente nos BRICS. Por exemplo, no fórum financeiro dos BRICS/SCO, que ocorreu em 8 de junho, o vice-presidente do Banco de Desenvolvimento Industrial da Turquia Çigdem Içel também estava presente; ademais, a participação formal dos Chefes de Estado da SCO na Cúpula dos BRICS como convidados elevou grandemente o status do evento. Porém, excetuando a agenda oficial, os líderes puderam se comunicar em um cenário informal, discutindo um número de questões que são igualmente importantes para construir uma parceria confiável.

O Ocidente se comportou de sua maneira característica de duplicidade e guerra informacional. Por exemplo, a publicação da Bloomberg foi totalmente manipulada, como se a economia agregada dos BRICS quase tivesse alcançado a economia americana. Isto não é verdade, já que segundo o FMI só a China já ultrapassou os EUA em 2014; o Conselho de Relações Exteriores, falando de forma mais realista, apontou que os BRICS reduzirão a influência do Ocidente. Stratfor acrescentou que os BRICS e a SCO evoluíram a um tipo de plataforma para mobilizar resistência contra os EUA. Ostensivamente, analistas americanos não ouviram ou não quiseram ouvir as afirmações repetidas das primeiras pessoas e ministros de que os BRICS não estão dirigidos contra qualquer Estado ou potência, possuindo uma agenda aberta. Similarmente, a SCO foi estabelecida para resolver questões de segurança regional na Eurásia, bem como para participar na produção de energia e na criação de corredores de transporte.

Mas é claro, as duas estruturas responderão adequadamente às tentativas de solapar a soberania ou interferência em questões internas. Na cúpula, os lados chinês e russo afirmaram e reafirmaram a importância de se preservar a justiça histórica e a necessidade de resposta imediata para quaisquer esforços de se justificar fenômenos como o nazismo.

A cúpula da SCO, ocorrendo imediatamente após os eventos dos BRICS no mesmo lugar, também esteve marcada por decisões importantes. Pela primeira vez na existência da organização a recepção de novos membros, Índia e Paquistão, ocorreu. Ademais, houve um acordo para a elevação no status de participação da República da Bielorrússia ao de Estado observador da SCO. Na qualidade de parceiros de diálogo da organização, uniram-se Azerbaijão, Armênia, Camboja e Nepal. Em uma das coletivas de imprensa em Ufa, um jornalista ocidental levantou a questão dos vários problemas entre Índia e Paquistão e como eles poderiam cooperar, se permanecerem as diferenças e o potencial para conflito. O ponto é que a SCO está trabalhando em um paradigma completamente diferente ao do Ocidente, que adere à escola do realismo político, com práticas de elementos como dissuasão, confrontação, conflito de interesses e daí em diante. A SCO está desenvolvendo toda uma nova abordagem de segurança coletiva, ao mesmo tempo que respeita os interesses e soberania de todos os membros da organização. É provável que, com este formato, ela seja até mesmo capaz de ajudar a normalizar as relações entre Armênia e Azerbaijão.

Muito importante é o fato de que a adesão da Índia e do Paquistão à SCO torna esta uma aliança de quatro potências nucleares. O Presidente uzbeque Islam Karimov acrescentou que isto poderia mudar o equilíbrio de forças no mundo. Não menos relevante é a questão da participação futura da República Islâmica do Irã. Enquanto Teerã estiver sob sanções da ONU, isto não é possível. Mas, como dito pelo Ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov, o Irã fez importantes progressos com diálogos entre os seis países e podemos esperar que no futuro este problema seja resolvido - a não ser que o Ocidente tente rever a estrutura dos acordos alcançados antes, como já aconteceu em outras situações.

Na cúpula da SCO um programa de cooperação na luta contra o terrorismo e o separatismo nos anos de 2016-2018 foi também aprovado (é digno notar que, nesta época, a direção do Comitê Executivo da SCO estará nas mãos da Rússia) e o desenvolvimento da Convenção da SCO para Combate ao Extremismo foi iniciado, bem como o estabelecimento do Centro de Resposta a Ameaças e Desafios à Segurança dos Estados-membros da SCO com base na Estrutura Regional Antiterrorista (RATS). A organização terrorista "Estado Islâmico" foi reputada como uma séria ameaça e todos os membros da SCO reiteraram sua intenção de combatê-la e outros extremistas internacionais.

O desenvolvimento da estratégia da SCO até 2025 foi aceita e a Declaração de Ufa foi adotada. A estratégia diz que a SCO trabalhará "em favor da construção de um sistema democrático policêntrico de relações internacionais", referindo-se também à fundação de um espaço de segurança indivisível. Também importantes são os princípios e valores designados de Estados e povos, nos quais as características históricas e a identidade de todos os Estados-membros são levados em consideração.

Em seu discurso dedicado aos resultados das duas cúpulas, o Presidente russo Vladimir Putin mostrou que está sendo feito um trabalho para "criar o Banco de Desenvolvimento da SCO e o Fundo de Desenvolvimento da SCO. A ideia de ter instituições com base na Associação Interbancária do Centro Internacional de Financiamento de Projetos da SCO é muito promissora". Ademais, o líder russo pediu um uso mais ativo das possibilidades da SCO inerentes aos BRICS.

Mas tirando o par BRICS-SCO, há muitos projetos regionais que naturalmente se unirão a ambos formatos. Assim, os líderes da Rússia e da China declararão que estão dispostos a trabalhar proximamente na implementação de dois projetos de integração - a União Econômica Eurasiana e o Cinturão Econômico da Estrada da Seda. Ademais, há relações trilaterais, tal como entre Rússia-Mongólia-China. Em paralelo à cúpula dos BRICS, os líderes dos três países concordaram em intensificar os trabalhos em uma série de frentes - da criação de projetos de infraestrutura a atividades culturais e de informação. Como o Chefe de Governo da China Xi Jinping pontuou, "é necessário formar uma comunidade de destino mútuo e promover a multipolaridade".

Os BRICS também coordenarão a defesa de sua posição dentro do Grupo dos Vinte (G20). Ademais, esta plataforma será usada para diferentes projetos dentro dos BRICS e da cúpula do G20 em novembro deste ano, a ser realizada na Turquia, continuando a discutir a preparação do banco e de outras tarefas identificadas na Declaração de Ufa.

Tudo isto automaticamente significa que qualquer tentativa de manipulação externa, mesmo sob pretextos plausíveis (por exemplo, os EUA estão ativamente promovendo o projeto de uma Nova Estrada da Seda), está destinada ao fracasso. E o mundo com a assistência dos BRICS e da SCO será mais seguro e harmonioso.

18/08/2015

Mark Hackard - O Bombardeiro da Paz

por Mark Hackard



Nos últimos meses de 2010, os EUA haviam intensificado sua campanha aérea sobre terras tribais pashtun que se situam ao longo de uma montanhosa e parcamente definida fronteira paqui-afegã. No curso de 102 dias, 58 ataques contra operativos da Al-Qaeda e do Talibã (bem como contra um número alto, porém desconhecido, de inocentes) foram realizados pela Força Aérea e pela frota de veículos aéreos não-tripulados da CIA.

Tanto jihadistas como civis são incinerados por mísseis hellfire sem muita atenção da mídia, e soldados e fuzileiros americanos que caem em combate não tem como esperar coisa muito melhor. Porém, uma morte conectada à guerra no Hindu Kush certamente atraiu atenção em Washington: a de Richard Holbrooke, o Representante Especial do Departamento de Estado para o Afeganistão e o Paquistão.

Holbrooke, responsável pela coordenação diplomática do conflito, morreu de uma aorta rompida em 13 de dezembro. Desde então, a imprensa e a administração Obama derramaram torrentes de elogios sobre esse "gigante da diplomacia americana". Mas talvez o tributo mais adequado ao homem tenha sido o papel cada vez maior de drones assassinos na execução de políticas, como relatado desde o noroeste do Paquistão. Apesar de suas experiências anteriores no Vietnã, Richard Holbrooke passou a crer firmemente em redenção por poder aéreo coercitivo. No bombardeio há progresso; no bombardeio deveremos encontrar a paz.

À luz de seu zelo missionário, as realizações e histórico de Holbrooke merecem exame. Ele foi, como o estudioso dos Bálcãs Srdja Trifkovic notou, um arquiteto central e de certas maneiras a personificação do intervencionismo americano. À parte seu status elevado em Foggy Bottom, Holbrooke representava um nexo de governo, interesses de Wall Street e influência de ONGs. Nessa capacidade, ele foi por décadas um impositor efetivo e enérgico da Pax Americana. Onde projetos geopolíticos americanos cruzavam com pontos de crise na Eurásia, Holbrooke era enviado para explorar a situação. Seus métodos de negociação consistiam principalmente na apresentação de ultimatos e punições correspondentes por desobediência.

A década de 90 seria a década em que Holbrooke ganharia sua fama. Conforme a antiga Iugoslávia se despedaçava em conflitos étnicos e religiosos, os EUA buscavam impôr sua dominação sobre a região. As guerras balcânicas daquela década foram algo brutal e complexo, mas para Holbrooke e a administração Clinton era tudo muito simples: os sérvios precisam ser diminuídos. Aqui, também, estava a perfeita oportunidade para se exercer poder americano em prol do progresso humano. Nos vales montanhosos do sudeste da Europa, os fantasmas da história só poderiam ser exorcizados com uma barulhenta demonstração de força. Como um profeta de Washington, Holbrooke iluminaria o caminho para uma Sociedade Aberta com munições guiadas por laser.

Os papeis nessa peça teatral moralista já estavam distribuídos: muçulmanos bósnios virtuosos e vitimizados, croatas mais ou menos toleráveis, e sérvios malignos, até mesmo selvagens. O fato de que o presidente bósnio Alija Izetbegovic e seu par croata Franjo Tudjman eram gangsters do mesmo molde que o sérvio Slobodan Milosevic não era registrado pelas elites da política externa americana - o roteiro já estava escrito, e tinha que ser seguido. A direção desse cenário por Holbrooke lhe garantiria seguidores no Ocidente, com os Acordos de Dayton de 1995 sendo projeto seu.

A fórmula favorita de Holbrooke de intimidação e bombardeio aéreo foi aplicada repetidamente para forçar Belgrado a se submeter às demandas americanas, primeiro de criar o Estado bósnio e então de separar o Kosovo da Sérvia em 1999. O seguinte pedido a seu colega Strobe Talbott esclarece Holbrooke, amante e libertador da humanidade, em toda sua retidão beligerante:

"Este é um momento crítico para nós pessoalmente, nossa responsabilidade para com a nação e a coisa certa a fazer. Dê-nos bombas para diplomacia. Dê-nos bombas para a paz. Precisamos bombardear para tornar nossa diplomacia efetiva. E não nos segurarmos".

Seria um erro ver tal apelo como meramente outro exemplo do dito de Clausewitz sobre a guerra como instrumento da política, pois ela está enraizada em uma visão muito mais ampla e de longo alcance. O homem criado quaker por pais judeus ateístas desenvolveu uma fé inabalável na violência redentora, a destruição revolucionária necessária para moldar um novo mundo. Nisso ele era uma alma irmã dos radicais oitocentistas e neoconservadores contemporâneos como Paul Wolfowitz. O desejo apaixonado de Holbrooke por bombas foi concedido, a influência americana na Europa justificada, e novos micro-estados muçulmanos estabelecidos nos Bálcãs.

Holbrooke usualmente explicaria suas ambições políticas no contexto de sua história familiar e etnia. Sua mãe havia fugido da Alemanha na década de 30, seu pai de Varsóvia. Um secularista convicto, como muitos outros homens assim Holbrooke ainda assim se orgulhava de sua herança judaica e evidentemente mantinha um forte laço emocional com Israel e o sionismo. E apesar de ele ter nascido em Nova Iorque, em seu coração ele se identificava com o refugiado alienado.

Por insistência da mídia, pressupõe-se que devamos associar o falecido Holbrooke fundamentalmente com compaixão e saudá-lo pro lançar seu nome por trás de inúmeras iniciativas humanitárias. Ainda assim, demonstrações públicas de virtude não retratam plenamente o espírito da carreira de Holbrooke e sua missão maior. Por trás da retórica moralista e de projetos de ajuda dignos de celebridades estava uma clara veia de animosidade em relação à cultura tradicional e os povos da Europa.

O que impulsionava Holbrooke tanto quanto simpatia por certas classes de vítimas era uma profunda hostilidade ao cristianismo, principalmente pela civilização ortodoxa, que tem permanecido significativamente fora da órbita americana. Assim, ele não foi apenas ativo mas entusiástico em garantir que a Sérvia seria pulverizada por uma campanha aérea da OTAN e roubada da província do Kosovo. Hoje o Kosovo é o maior conduíte europeu para a heroína afegã e um centro de tráfico ilegal de órgãos, além de abrigar uma das maiores bases americanas no continente. Holbrooke também nunca cansou de recomendar a entrada da Turquia na UE e era um promotor ativo de proxies jihadistas na Europa ocupada.

Se uma política provavelmente antagonizaria a Rússia, Holbrooke provavelmente a apoiaria. Da expansão da OTAN, a revoluções coloridas e programas de "sociedade civil" a tensões na Ossétia do Sul, ele consistentemente buscava interferir na periferia de Moscou. Sérvios desafiadores e os nacionalistas retrógrados no Kremlin tinham que conhecer seu lugar no Admirável Mundo Novo, e precisavam assim ser punidos e humilhados até que abraçassem sua subjugação. Se a Rússia em algum momento tivesse carecido dos meios de se defender, Holbrooke indubitavelmente teria estado pronto para implementar o modelo Kosovo no Cáucaso.

Todo o estilo e substância da obra de Holbrooke pode ser destilada em uma qualidade: não compaixão, mas agressão. A antiga prática imperial de dividir para conquistar só foi ampliada pelo discurso da ideologia dos "direitos humanos", e clipes de refugiados veiculados pela CNN serviam como desculpa conveniente para lançar mísseis contra infraestrutura civil. Onde estava, então, a lendária compaixão de Holbrooke por sérvios "expurgados" em Krajina e no Kosovo, ou por aqueles sequestrados, executados e explorados como doadores de órgãos no mercado negro? E as vítimas da Operação Força Aliada da OTAN? Elas não merecem a menor lembrança; nem, aliás, cristãos do Levente ao Timor Leste. Holbrooke tinha pouco tempo para se importar com os massacres dos timorenses na década de 70, enquanto ele estava obtendo caças contra-insurgentes para os assassinos indonésios. Isso não é pacificação, mas predação.

O teórico russo da renovação cultural Ivan Ilyn descreveu os bolcheviques que tomaram o poder em sua terra natal como aventureiros internacionalistas. Entre os supostos estadistas de nossa era, Richard Holbrooke exibia a marca do messianismo impiedoso característico de um Lênin ou Trótski. Ele, também, era um aventureiro internacionalista e o herdeiro espiritual de uma geração anterior de homens que promoveram a causa da revolução global. A morte de Holbrooke na aventura afegã é um prenúncio pouco sutil do que vem por aí: tal como o marxismo soviético, a ordem liberal marcha de seu momento de exaltação à aniquilação em meio a um terreno familiar.

Comentaristas tem lamentado o vácuo na política externa americana causado pela saída de um diplomata insubstituível. Em realidade há muito tem havido um nada sobrepujante no globalismo americano; o próprio Holbrooke, a grande máquina de demolição, incorporava este fenômeno melhor do que ninguém. Ele prestou serviços inestimáveis ao Império, tornando o mundo seguro tanto para a MTV como para os mujahedin, para a Ikea e o ELK. O que permanece é uma trilha de morte, as baixas infligidas para aproximar o homem a uma fraternidade de consumo, o composto para um futuro perfeito de liberdade e igualdade.

Richard Holbrooke proferiu estas palavras em uma entrevista em 2010 para descrever o programa político jihadista, mas ele não captou a ironia. Sua frase expõe tão bem quanto a longa guerra por democracia universal:

"É puro niilismo. Eles não representam absolutamente nada além de destruição, e eles destroem as vidas das pessoas deu ma maneira aleatória e insana".


02/08/2015

Arturo Pérez-Reverte - Os Amos do Mundo

por Arturo Pérez-Reverte



Você não sabe, mas depende deles. Você não os conhece, nem cruzará com eles em sua vida, mas esses filhos da puta o tem em suas mãos, na agenda eletrônica, na tela do computador, seu futuro e o de seus filhos. você não sabe que rosto têm, mas são eles que o vão mandar à fila de desempregados em nome de um três-ponto-sete, ou um índice de probabilidade de zero-vírgula-zero-quatro.

Você não tem nada a ver com esses fulanos porque é empregado de uma serralheria ou caixa de loja, e eles estudaram em Harvard e fizeram mestrado em Tóquio, ou ao contrário, vão pelas manhãs à Bolsa de Madri ou à de Wall Street, e dizem em inglês coisas como "long-term capital management", e falam de fundos de alto risco, de acordos multilaterais de investimento e de neoliberalismo econômico selvagem, como quem comenta a partida de domingo.

Você não os conhece nem por foto, mas esses motoristas suicidas que circulam a duzentos por hora em um furgão carregado de dinheiro vão atropelá-lo mais dia menos dia, e nem mesmo lhe restará o consolo de ir de cadeira de rodas para jogar ovos neles, porque eles não tem rosto púbico, apesar de serem reputados analistas, tubarões das finanças, prestigiosos especialistas no dinheiro alheio. Tão especialistas que sempre acabam tornando-o seu. Porque sempre são eles que ganham, quando ganham; e nunca são eles que perdem, quando perdem.

Não criam riqueza, só especulam. Lançam ao mundo combinações fastuosas de economia financeira que nada tem a ver com a economia produtiva. Alçam castelos de cartas e os garantem com espelhos e fumaças, e os poderosos da Terra perdem a cabeça de tanta bajulação só para que possam subir em seu carro.

Isso não pode falhar, dizem. Aqui ninguém vai perder. O risco é mínimo. O garantem prêmios Nobel de Economia, jornalistas financeiros de prestígio, grupos internacionais com siglas de reconhecida solvência.

E então, o presidente do banco transeuropeu tal, e o presidente da união de bancos helvéticos, e o chefinho do banco latinoamericano, e o consórcio eurasiático, e a mãe que pariu a todos, embarcam com alegria na aventura, enfiam dinheiro por um tubo, e logo se sentam para esperar essa bolada que vai fartar ainda mais todos eles e seus representados.

E enquanto sai bem a primeira operação já estão arriscando mais na segunda, que pechincha é pechincha, e juros de trocentos por cento não se encontram todos os dias. E ainda que esse jogo de espelhos especulador nada tenha que ver com a economia real, com a vida de cada dia das pessoas na rua, tudo é euforia, e palmadinhas nas costas, e até entidades bancárias oficiais comprometem suas reservas de divisas. E isto, senhores, é o paraíso.

E logo resulta que não. Logo resulta que o invento tinha suas falhas, e que isso de "alto risco" não era uma frase, mas exatamente isso: alto risco de verdade. E então todo o palanque desaba. E estes fundos especiais, perigosos, que cada vez tem mais peso na economia mundial, mostram seu lado negro. E então, oh prodígio, enquanto os benefícios eram para os tubarões que controlavam a zona e para os que especulavam com dinheiro alheio, parece que as perdas, não.

As perdas, a mordida financeira, o pagamento pelos erros desses playboyzinhos que brincam com a economia internacional como se jogassem Banco Imobiliário, recaem diretamente sobre as costas de todos nós.

Então resulta que enquanto o benefício era privado, os erros são coletivos, e as perdas tem que ser socializadas, acudindo com medidas de emergência e com fundos de salvação para evitar efeitos dominó e todos metem a mão. E essa solidariedade, imprescindível para salvar a estabilidade mundial, é paga com sua pele, sua poupança, e às vezes com seu posto de trabalho, pelo Mariano Pérez Sánchez, empregado de comércio, e pelos milhões de infelizes Marianos que ao longo e largo do mundo se levantam todo dia às seis da manhã para ganhar a vida.

Isso é o que vem por aí, temo. Ninguém perdoará um centavo da dívida externa de países pobres, mas nunca faltarão fundos para tapar buracos de especuladores e canalhas que jogam roleta russa com a cabeça alheia.

Assim podemos já ir nos preparando para o que vem por aí. Este é o panorama que os amos da economia mundial nos apresenta, com a conversa de tanto neoliberalismo econômico e tanta merda, de tanta especulação e tão pouca vergonha.