05/05/2016

Nicola Denzey - O que é Gnosticismo? Uma crítica ao livro de Karen L. King

por Nicola Denzey



Um leitor despreparado pode pegar What is Gnosticism? esperando um texto introdutório ou um estudo definitivo da natureza e das origens do gnosticismo. Esse livro, no entanto, escrito por uma das maiores eruditas em cristianismo primitivo, não deve ser confundido com uma introdução. Em primeiro lugar, ele nunca discorre sobre o que é gnosticismo. De uma maneira subversiva -tendo em conta o título do livro- King afirma que “gnosticismo” existe somente como uma reificação, um construto terminológico derivado basicamente de um discurso cristão primitivo sobre ortodoxia e heresia que adquiriu uma existência independente. “Meu propósito com esse livro,” explica King, “é demonstrar como o trabalho acadêmico acerca do gnosticismo no século XX simultaneamente reescreveu, elaborou e apartou-se desse discurso”. O livro supõe que os leitores terão no mínimo familiaridade com as fontes convencionalmente descritas como gnósticas, e também com termos contemporâneos em debate e figuras proeminentes.  Esse “público ideal” de estudantes e pessoas com mente aberta tem muito a ganhar da leitura do livro de King. Contudo, leitores esporádicos irão provavelmente achar a tese de King -como o próprio livro- muito sofisticada e demasiadamente esotérica no âmbito historiográfico.

Karen King lecionou na Occidental College em Los Angeles antes de transferir-se para seu cargo atual como professora de História do Cristianismo Antigo na Harvard University Divinity School. Uma respeitada estudiosa do gnosticismo, o trabalho de King tem se focado frequentemente em questões de gênero (2). What is Gnosticism? é o seu segundo livro lançado em 2003, ao lado de sua nova tradução do Gospel of Mary (Santa Rosa, CA: Polebridge, 2003). Aqui, King identifica o seu interesse primário como “a formação da identidade cristã primitiva e a crítica das atuais categorias acadêmicas de análise”. Este livro esteve em construção por pelo menos vinte anos: tivemos a oportunidade de provar a sua argúcia crítica em uma série de artigos sobre o tema do gnosticismo e formação de identidade que ela apresentou a uma variedade de públicos acadêmicos desde 1993. Porque um livro como o de King é apropriado? Os últimos cinquenta anos testemunharam uma série de mudanças nos paradigmas da academia que exigiram a revisão e a rearticulação da nossa disciplina. A primeira das mudanças historiográfica e hermenêutica que King relata é o surgimento da  Religionsgeschichtliche Schule como distinta da teologia em seu interesse, foco, cânone fixo, e o seu superssesionismo cristão implícito. A segunda mudança foi iniciada pela descoberta dos arquivos -contendo textos cristãos- de Nag Hammadi em 1945 no Egito, até então desconhecidos. Porque antes de 1945 os estudiosos possuíam um número muito limitado de fontes primárias que cristãos defensores das principais correntes nomearam “gnósticas”, os tratados de Nag Hammadi tiveram um impacto profundo em nossa compreensão do cristianismo primitivo como uma religião profusamente diversa em doutrina e práxis. A terceira e mais recente mudança tem sido a reavaliação da Escola da História das Religiões por acadêmicos pós-modernos e pós-colonialistas, que levaram em conta a sua orientação colonialista e orientalista explícita. Por essas três razões, o trabalho de gerações de estudiosos do gnosticismo - foi construído sob um número limitado de fontes primárias e os polêmicos escritos de alguns poucos heresiólogos cristãos – precisavam ser reconsiderados. Na maioria dos casos, esse exame iria exigir uma revisão substancial.

O escopo do livro de King é ambicioso, mas é necessário que o seja. Ela reconhece que é impossível abordar o problema conceitual e de definição do gnosticismo sem atacar o problema conceitual e de definição de “heresia”, que aborda a questão do discurso da ortodoxia no cristianismo. Ela destaca, “...uma discussão acerca do discurso de ortodoxia e heresia precisa incluir polêmicas focadas nos pagãos e judeus também”. King dedica o oitavo capítulo do livro a uma crítica e avaliação do “discurso de ortodoxia e heresia” em fontes antigas, no trabalho de estudiosos do começo do século XX, e em estudos mais contemporâneos. O livro discorre sobre o processo de formação primitiva da identidade cristã como um todo, com resultados convincentes e incisivos. É revigorante ler uma abordagem que não marginaliza nem o judaísmo e nem o paganismo, ou que coloca o cristianismo em relevo em relação a opções religiosas “insuficientes” no mundo antigo.

Em seu primeiro capítulo, “Porque o gnosticismo é tão difícil de definir?” King descreve resumidamente duas amplas abordagens acadêmicas acerca do gnosticismo, uma genealógica e outra tipológica. A primeira abordagem localiza a origem e o desenvolvimento do gnosticismo ao longo do tempo ao analisá-lo e compará-lo, por um lado, com as religiões orientais, e por outro lado, com o “cristianismo” (isto é, a ortodoxia). A segunda abordagem se desdobra a partir de análises fenomenológicas principalmente de materiais literários para desenvolver um conjunto de termos, características e tendências coerentes e definitivos. As duas abordagens -King enfatiza- acabaram se extraviando consideravelmente; o mais significativo, a descoberta dos textos de Nag Hammadi, rendeu análises genealógicas e tipológicas na maioria das vezes irrelevantes. Foi central também o problema da relação conturbada entre gnosticismo e cristianismo como um todo. King observa, “o problema de definir o gnosticismo foi e continua sendo em primeiro lugar um aspecto do projeto contínuo de definir e manter um cristianismo normativo”. Nas palavras finais do capítulo, King esclarece a tarefa que está adiante na continuação do livro:

“Meu propósito [...] é considerar de que maneira o discurso de ortodoxia e heresia dos antigos cristãos e suas polêmicas está entrelaçado com os estudos acadêmicos acerca do gnosticismo no século XX com o intuito de demonstrar onde e como esse envolvimento distorceu nossa análise dos textos antigos. Está em discussão não apenas a capacidade de escrever uma história mais exata do cristianismo antigo em todos os seus aspectos multiformes, mas também a nossa capacidade para engajar-se na crítica da política antiga que versava sobre as diferenças religiosas ao invés de reproduzir suas estratégias e resultados inadvertidamente.”

Na sequência, o capítulo dois, “Gnosticismo como heresia”, está focado na “consolidação retórica” da ampla variedade de opções religiosas disponíveis para os indivíduos no mundo antigo em três grupos reconhecíveis, mutuamente exclusivos e facilmente definidos: judeus, cristãos e pagãos. O que estava em questão, observa King, era o discurso de diferença e igualdade que era crucial para a construção da identidade cristã. Com o objetivo de excluir aqueles cristãos a quem os membros de uma ortodoxia nascente se opunham, os membros desse grupo precisavam fazer com que seus concorrentes parecessem estrangeiros; certas diferenças práticas e doutrinais precisavam ser fabricadas, da mesma forma que diferenças reais precisavam ser exageradas. Como parte da estratégia de distinção, as similaridades -fossem entre cristãos e judeus, cristãos e pagãos, ou diferentes professores cristãos- eram suprimidas ou maliciosamente distorcidas. Alguns cristãos foram tão bem-sucedidos nessa tarefa, aponta King, que até agora os termos “heresia” e “ortodoxia” implicam somente diferença, e não similaridade. Esses dois termos são melhor entendidos como a consequência de um processo avaliativo que buscava “articular o significado de si silenciando e excluindo outros membros do grupo simultaneamente”. King recorre aos exemplos de Prescrição Contra os Hereges de Tertuliano e Contra as Heresias de Irineu em um conjunto de atitudes que ela categoriza como “antissincretismo”. Esse discurso funcionou para definir e defender limites e para contribuir à “narrativa central” do declínio cristão de um período prístino até as divisões doutrinais do segundo século e nos períodos sequentes.

Os capítulos três e quatro são explicitamente historiográficos, à medida que King trabalha com figuras importantes no pensamento religioso e movimentos relacionados do começo do século XX. O capítulo três investiga Adolf Von Harnack, o capítulo quatro, o início da Religionsgeschichtliche Schule. Talvez seja esse o capítulo mais importante escrito por King para os leitores modernos, aqui a autora fornece sínteses e análises inteligentes e úteis acerca de trabalhos que são notoriamente impenetráveis e normalmente encontrados apenas no idioma alemão original. Essa extensa investigação da historiografia do início do século XX é central para que King prove a sua tese: a academia moderna serviu apenas para reescrever um discurso de ortodoxia e heresia estabelecido por certos cristãos dos séculos dois e três. King destaca que, como teólogo e pesquisador, Harnack compreendia perfeitamente as múltiplas formas do cristianismo antigo, mas como os seus antecessores, Irineu e Tertuliano, ele empregou o termo “gnosticismo” como uma ferramenta retórica para produzir uma visão normativa do cristianismo.

O capítulo cinco, “gnosticismo reconsiderado”, é dedicado a uma discussão de Walter Bauer -particularmente o seu estudo notório: Ortodoxia e Heresia no Cristianismo Primitivo- e ao livro de Hans Jonas Gnosis und Spätantike Geist. King retrata Bauer como um inovador, o primeiro a desenvolver um modelo alternativo da historiografia cristã, longe da narrativa central do supersessionismo cristão. Jonas, de maneira muito diferente, foi importante por sua redução tipológica do gnosticismo em uma série de qualidades ou características. A sua obra Gnostic experience of self and World definiu o gnosticismo como um movimento religioso transhistórico caracterizado primeiramente pela experiência da alienação existencial e abnegação do mundo. Portanto, Jonas propôs sete qualidades do gnosticismo: gnose, caráter dinâmico (crise patomórfica), caráter mitológico, dualismo, impiedade, artificialidade, e local histórico único. King discute cada uma dessas qualidades por vez, apontando os seus problemas e falhas. O capítulo termina com uma discussão do estudioso Carsten Colpe, membro da  Religionsgeschichtliche Schule. Não está claro qual a ligação entre essas três figuras, contudo, de uma maneira geral, a divisão desse capítulo -como em todo o livro- parece mais arbitrária do que ordenada em uma única narrativa central.

Os últimos três capítulos do livro discutem estudos acadêmicos acerca do gnosticismo após a descoberta dos textos de Nag Hammadi. Nesse capítulo, King discute as próprias fontes, particularmente a maneira pela qual elas desafiam os sistemas de classificação e caracterização estabelecidos por estudiosos de gerações anteriores. De fato, King é sagaz ao destacar que até mesmo as tipologias gnósticas escritas após a descoberta dos textos, tais como “setianismo” e “valentianismo” se apresentam limitadas no intento de parecerem coerentes quando aplicadas à vasta diversidade doutrinária que encontramos nos quarenta e seis textos de Nag Hammadi. Como aponta King, “o problema com a variedade não é a própria variedade; o problema é a tentativa de forçar objetos irregulares e multiformes em formas quadradas com definições elementares”. Esses capítulos são particularmente agradáveis porque eles se distanciam da historiografia das fontes antigas; entretanto, é difícil avaliar como um leitor que não seja versado nos textos de Nag Hammadi conseguiria acompanhar os resumos e os argumentos de King.

Os leitores provavelmente irão comparar What is Gnosticism? ao livro de Michael Williams,   Rethinking "Gnosticism": Arguments for Dismantling a Dubious Category. O trabalho intrigante de Williams -que rapidamente tornou-se uma leitura obrigatória para todos os estudiosos sérios de gnosticismo antigo- argumenta em favor do abandono total do termo “gnosticismo”, justificando que é melhor não imaginar que algo como o “gnosticismo” ou a “a religião gnóstica” algum dia tenha existido. Ao invés, Williams sugere que estejamos cientes dos diversos grupos e indivíduos que originalmente englobavam o cristianismo antes de serem marginalizados por uma ortodoxia emergente. É óbvio que Rethinking Gnosticism e What is Gnosticism? foram escritos na mesma época e que King e Williams mantinham diálogos constantes um com o outro. Eles dirigem-se um ao outro de maneira cuidadosa e elegante nos prefácios dos seus livros: é evidente que o contato entre ambos deu origem a uma relação de respeito e amizade e não de competição. Ainda assim, considerando que Rethinking Gnosticism foi o primeiro a aparecer, o problema para King é se What is Gnosticism? avança suficientemente na abordagem que os dois estudiosos levam à frente, e se ela consegue tratar do tema de uma maneira que complemente, ao invés de competir com o livro de Williams. Como uma resposta parcial a essa questão, é importante perceber que para todas as similaridades e teses virtualmente iguais, são dois livros muito diferentes, porque os autores trabalham de maneira muito diferente. Williams aplica categorias tipológicas previamente estabelecidas do “gnosticismo” aos materiais antigos, destacando assim as suas insuficiências para o entendimento dos materiais antigos em seus próprios termos. King constrói cuidadosamente uma espécie de genealogia historiográfica e mantém seu foco consistentemente nos estudos acadêmicos do último século, relatando a história de como a reificação do “gnosticismo” aconteceu em meio aos interesses e movimentos da vasta matriz social e intelectual do século XX. Os livros diferem também em suas sugestões para trabalhos futuros. No lugar de “gnosticismo”, Williams sugere que seja adotado, quando apropriado, o termo específico “demiurgia bíblica”. Embora King aponte acertadamente os problemas com esse termo: ele é difícil e desajeitado, e persiste nos mesmos processos de nomear e categorizar, e por isso deve ser abandonado por completo. E ainda, ela dedica mais tempo para criticar estudiosos e pesquisas acadêmicas do que resolver o problema essencial proposto pelo livro. Há futuro para o  estudo do gnosticismo sem “gnosticismo”? Ela levanta essa questão em seu oitavo e último capítulo, mas conclui de maneira reflexiva: “Não é tão importante eliminar o termo per se, mas reconhecer e corrigir as formas pelas quais reescrever os discursos de ortodoxia e heresia podem distorcer a nossa leitura e reconstrução de religiões antigas.”

Por fim, o leitor de What is Gnosticism? questiona-se porque King trabalha de maneira persistente a genealogia historiográfica do gnosticismo. O que está em discussão, mais precisamente? E qual o seu êxito em transmitir isso? King afirma em princípio que irá reexaminar como o estudo acadêmico do século XX acerca do gnosticismo reescreveu um discurso do século dois, mas a maioria de seus exemplos detalhados (Harnack, Jonas, Bousset, Reitzenstein, Bauer) encontra-se na primeira metade do século. O único estudioso contemporâneo do gnosticismo discutido detalhadamente é Michael Williams, deixando a impressão de que não há mais ninguém realizando pesquisas similares à de King. Considerando o que o leitor é levado a concluir a respeito do “estágio” no qual o debate se encontra, a autora deixa a impressão de que a sua iniciativa é a única existente em defesa de uma nova hermenêutica. Isso não é inteiramente verdadeiro, porque o trabalho de King não apresenta novos materiais da mesma forma que apresenta, para um grande público, a abordagem metodológica já bem estabelecida na academia entre especialistas nos textos de Nag Hammadi e cristianismo primitivo. No entanto, é possível que King acredite que há apenas alguns estudiosos que tomam essa abordagem como correta, e esse livro evidentemente não é escrito para eles.

Enquanto esse livro derruba as estruturas sob as quais se erigiram muitos estudos anteriores do gnosticismo, King não avança no sentido de propor uma nova direção, embora o seu capítulo final e “Nota sobre Metodologia” parecem sugerir que tal direção encontra-se na adoção de estratégias de leitura pós-modernas e pós-coloniais. Seria esclarecedor e estimulante ver exemplos dessa nova hermenêutica aplicada aos escritos de Nag Hammadi de maneira individual ou em sua totalidade, e quanto a isso é possível afirmar que há de fato artigos e monografias recentes a serem considerados, embora até então ignorados. Pelo fato de que a autora não discorre sobre o trabalho de estudiosos modernos do cristianismo primitivo que igualmente adotam o Neo-historicismo, ela ignora as experiências anteriores colocando suas próprias convicções metodológicas em grande destaque frente a um século de estudos acadêmicos falhos. Ainda assim, certamente há espaço para o livro de King, considerando que se trata do único estudo acadêmico completo no âmbito do gnosticismo. Os leitores podem acompanhar o raciocínio de uma história escrita com maestria acerca de uma disciplina acadêmica relativamente nova, agora enfrentando o desafio da modernidade.

Notas:



2.  1 - N. do Tradutor: os estudos de Karen L. King nesse âmbito tratam-se de revisões e novas interpretações do papel desempenhado pela mulher no cristianismo antigo e em outras religiões da antiguidade e acerca da importância e o papel do gênero nas sociedades antigas onde essas religiões floresceram.