23/02/2017

Germán Gorráiz López - George Soros e a Conspiração Anti-Trump

por Germán Gorráiz López



O livro The Power Elite (1956) de Wright Mill aponta que a chave para compreender os interesses americanos se encontra na organização ao topo de sua sociedade. Assim, o establishment é “o grupo de elite formado pela união das subelites política, militar, econômica, universitária e dos mass-media dos EUA” e lobbies de pressão que estão interconectados por “uma aliança incansável baseada em seus interesses e dirigida por uma metafísica militar”. Esse conceito é baseado em uma definição militar da realidade e transforma a economia em um permanente estado de guerra cujo paradigma seria o de Rockefeller. Isso significa participação integral na indústria financeira, militar e “judaica”, da qual um dos membros, David Rockefeller, seria o impulsor da Comissão Trilateral (TC) ou Trilateral (1973).

Porém, Donald Trump, um candidato que em princípio é totalmente refratário à disciplina partidária e se tornou a “ovelha negra” do establishment, foi finalmente eleito presidente dos Estados Unidos na eleição presidencial de novembro. O seu triunfo surpresa aliado ao do Brexit irá marcar o final do “estágio” do “cenário teleológico no qual o propósito dos processos criativos eram planejados por modelos finitos nos quais a intenção, o propósito e a antecipação e os seus substitutos pela 'cena teleonômica' (estão) marcados por doses extremas de volatilidade” que irá afetar de uma maneira especial a nova ordem geopolítica mundial.

O novo inter pares geopolítico

Com Trump, iremos testemunhar o final da unipolaridade dos Estados Unidos e o seu papel como polícia global e sua substituição pela nova doutrina da multipolaridade ou “inter-paridade geopolítica” formada pela troika dos EUA, China e Rússia (G3). A União Europeia, Japão, Índia e Brasil serão convidados sólidos no novo cenário geopolítico. Assim, em um discurso dado por Trump no quartel-general da influente revista política The National Interest, Donald Trump apresentou as linhas gerais de sua política externa que poderia ser sintetizada em seu lema “América primeiro” o que de facto significa o retorno do protecionismo econômico após ter cancelado Tratado Norte-Americano de Livre Comércio com o Canadá e o México (NAFTA) assim como o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) e a Parceria Transpacífico (TPP), isto é, a peça central da administração de Obama em sua política de reafirmar o poder econômico e supremacia militar na região do Pacífico. Isso seria um golpe direto nos interesses geopolíticos conhecidos como o “Clube das Ilhas”, com ativos valendo em torno de 10 trilhões de euros e cujo líder, de acordo com o espião russo Daniel Estulin, é o financista e hábil criador de “revoluções coloridas”, George Soros.

Por outro lado, em uma entrevista com o canal de TV americano ABC, o presidente eleito Donald Trump externou a ideia de que “A OTAN é obsoleta, não serve para combater o terrorismo e custa muito aos EUA”, e exigiu que os países europeus membros da OTAN “paguem sua parte” porque a contribuição econômica desses países europeus é menor do que 2% do PIB nacional, deixando o grosso do financiamento nas mãos dos EUA (70% do orçamento total).

Trump também denunciou a “quantidade excessiva de armamentos circulando atualmente no mundo” o que iria implicar na suposição de um isolacionismo ao nível militar por parte dos EUA, e a ascensão do G-3 (EUA, Rússia e China) como “primus iguais” na governança global. Isso significaria a suspensão do programa nuclear americano com uma duração de trinta anos e o custo de um bilhão de dólares assim como a interrupção do sistema projetado para detectar mísseis cruise (JLENS) no território dos EUA , o que seria um míssil na direção do complexo industrial e militar que planejou para o estágio pós-Obama a recuperação do papel dos EUA como a polícia mundial através da quinta fase da mobilização do escudo de mísseis na Europa (euro DAM), e um aumento extraordinário das intervenções militares dos EUA no exterior (leia-se nova guerra do oriente médio).

Soros e a conspiração anti-Trump

Até Eisenhower, a CIA era a única agência central de inteligência para o governo dos Estados Unidos e estava por detrás de múltiplas tarefas de treinamento insurgente e desestabilização de governos opostos às políticas do Pentágono, mas os lobbies militar e financeiro (ambos fagocitados pelo lobby judaico) não resistiriam à tentação de criar um governo de facto que manipulasse as complexidades do poder, resultando na emergência de uma nova entidade -o complexo militar e industrial de Eisenhower- refratária à opinião pública e ao controle do congresso e senado dos Estados Unidos). No presente, a organização haveria se transformado na chamada Homeland Security¹ e a partir da CIA-Hidra teriam se originado 17 novos departamentos na forma de agências de inteligência que integrariam a Comunidade de Inteligência dos Estados Unidos (o quarto setor do governo de acordo com Tom Engelhardt), patógenos de natureza totalitária, tornando-se um estado paralelo, poder verdadeiro nas sombras, fagocitado pelo “Clube das Ilhas” de George Soros, e que seriam conjurados contra a proposta de Trump dos primus inter pares geopolíticos ou G3.

Essa conspiração anti-Trump teria sido projetada após a recente reunião em Washington na qual quase 200 partidários de Hillary Clinton participaram na chamada Alliance for Democracy (DA)², uma mega-organização fundado por George Soros em 2005. Essa é a primeira fase para atacar a transferência de poder de Obama à Trump através de uma “revolução patriota ou multicolorida” nos EUA. De acordo com o website Zero Hedge, o protesto popular espontâneo anti-Trump teria sido inspirado pelo website MoveOn.org, financiado por Soros sob o lema “Get up and fight for American ideals”³, e cuja segunda fase seria truncar a carreira política de Trump, resultando na ascensão do vice-presidente Mike Pence ao cargo de presidente e o retorno ao caminho das pseudodemocracias protegidas pelo verdadeiro poder nas sombras dos EUA (o quarto setor do governo).



Notas do Tradutor:

¹ Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos
² Aliança da Democracia

³ Levante-se e lute pelos ideais americanos

21/02/2017

Sindicalismo Revolucionário: Uma Especialidade Francesa



"O sindicalismo francês nasceu da reação do proletariado contra a democracia" (H. Lagardelle)

Na história do movimento operário europeu, o sindicalismo revolucionário francês tem um lugar especial graças à originalidade de sua organização e seu estilo de ação.

Suas Origens

O confisco da Revolução de 1789 pela burguesia tão só para seu benefício, leva ao estabelecimento de sua dominação. Uma de suas prioridades era impedir os trabalhadores de se organizarem de modo a se defender contra sua exploração. Sob o pretexto falacioso de eliminar as guildas do Antigo Regime, a lei "Le Chapelier" de julho de 1791 proibiu qualquer acordo entre trabalhadores para garantir seus interesses. Qualquer tentativa de sua parte era julgada como "um atentado contra a liberdade e a Declaração dos Direitos do Homem".

Consequentemente, o movimento operário nasceu em segredo. O crescente desenvolvimento deas organizações de auxílio mútuo dos trabalhadores foi reconhecido sob o Segundo Império que terminou a criminalização da sindicalização em 1864. Mas a repressão sanguinária da Comuna levou ao desaparecimento dos melhores quadros revolucionários; fuzilados, exilados ou deportados para colônias penais ultramarinas após a Semana Sangrenta.

O proletariado estaria, então, sob a vigilância draconiana de sucessivos governos. A burguesia, temendo um levante geral a qualquer momento contra seu poder, encorajava máxima dureza. Não podemos compreender o egoísmo burguês sem levar em consideração o medo permanente de ver negada a propriedade adquirida. Para os trabalhadores, o Estado se tornou a ferramente repressiva do Capital. Em 1831, 1848 e 1871, as classes dominantes responderam com violência às reivindicações legítimas da classe trabalhadora. Essa experiência de repressão forjou a convicção da vanguarda proletária de que diante das autoridades não era possível negociar, apenas lutar. O antiparlamentarismo do sindicalismo revolucionário é explicado pela convicção de que nenhuma reforma é possível em um sistema derivado do e dominado pelo capitalismo. O antimilitarismo também vem daí. O exército não era mais o defensor da nação, mas o rompedor de greves. O envio de tropas era a resposta do poder público às expectativas do povo. A intensa propaganda antimilitarista dos sindicalistas revolucionários encontrava resposta favorável nas classes populares forçadas a ver seus filhos recrutados para o serviço do regime repressor.

Os Conselhos de Trabalhadores


A proclamação da Terceira República não pôs um fim à repressão. A desorganização das estruturas sindicalistas levou ao aparecimento de grupos reformistas, pregando o acordo com o Estado e com a burguesia, o que só confirmou a inutilidade do diálogo com a opressão. O que se transcreveu em um ressurgimento de sindicatos revolucionariamente inclinados.


Durante este período, com o objetivo de controlar a circulação de sua força de trabalho, os empregadores encorajaram os municípios a criar conselhos de trabalhadores ("bourses du travail") com o objetivo de regular o mercado de trabalho a nível local. Eles se multiplicaram com velocidade prodigiosa (o primeiro em Paris em 1887 e a partir de 1890 em Toulouse).

Muito rapidamente, sua reapropriação por militantes revolucionários transformou os conselhos em centros de luta social. Organizando a solidariedade dos trabalhadores, eles foram um laboratório para futuras formas de ação pelos sindicalistas franceses. Este movimento era liderado por um homem excepcional, Fernand Pelloutier, que foi uma das inspirações de Georges Sorel, que o qualificou como "o maior nome na história dos sindicatos". Ele guiou a criação da Federação Francesa de Conselhos de Trabalhadores (Fédération des Bourses du Travail de France). O movimento operário francês deve a ideia da greve geral e da independência dos sindicatos em relação a partidos políticos e ao Estado a ele. Ele estava, então, em oposição total a Jules Guesde, fundador do Partido Operário Francês, de inspiração marxista, que afirmava a prioridade da ação política partidária sobre as lutas sindicalistas.

Os conselhos seguiam dois eixos paralelos de ação. Em primeiro lugar, ação social, que consistia em colocação em empregos, ajudar a qualificar profissionalmente os trabalhadores. Os conselhos de trabalhadores eram aplicações concretas do programa revolucionário socialista por meio de cursos profissionais e de educação geral, clínicas médicas encarregadas de combater as companhias de seguros complacentes demais com os empregadores durante acidentes de trabalho, bibliotecas para a formação ideológica e lazer dos trabalhadores, ou serviços jurídicos para informar os trabalhadores sobre novas leis sociais da Terceira República. A dimensão da educação popular era uma das prioridades de Pelloutier, segundo sua famosa citação "educar para revoltar". A emancipação dos trabalhadores ocorre primeiro pela percepção da realidade de sua exploração. Como Emile Pouget declarou, "a tarefa dos revolucionários não consiste em tentar movimentações violentas sem levar em consideração as contingências. Mas preparar os espíritos, para que estes movimentos entrem em erupção quando circunstâncias favoráveis se apresentarem".

Em segundo lugar, a ação de conectar e unificar com sindicatos de trabalhadores. O estabelecimento de conselhos leva ao desenvolvimento de sindicatos que podem depender de suas redes. Eles eram locais de reunião para trabalhadores grevistas, fndos para greve eram coletados nas fábricas de modo a ajudar os trabalhadores na luta. A CGT (Confédération Générale du Travail) e a Fédération de Bourses se fundiram em 1902 durante o Congresso de Montpellier, constituindo assim uma única organização central composta de duas seções, a das federações de trabalhadores, e a dos conselhos. Mas antes disso um evento fundacional para o movimento sindicalista francês ocorreu: o nascimento da CGT.

1895: A CGT

Em 1884, quando a lei autorizou a criação de sindicatos, a República tentou seduzir o proletariado para fazê-los esquecer de sua aliança objetiva com o grande capital. A maioria dos trabalhadores permaneceu desconfiada, considerando que essa lei havia sido concebida para controlar a existência de estruturas que até então eram clandestinas.

Após negociações preliminares, em Limoges em setembro de 1895 a Confédération Générale du Travail surgiu, a qual fixou seu objetivo principal como "unir os trabalhadores em luta no campo econômico e em laços de estreita solidariedade, para sua completa emancipação".

Após os primeiros anos caóticos, sob a lidernaça de Victor Griffuelhes a organização experimentaria um período de intensa atividade. Nomeado secretário-geral da CGT, este velho operário era um fanático militante blanquista, devotado a fazer da organização uma máquina de guerra classista.

Com Émile Pouget, seu fiel camarada, nós o encontramos onde quer que haja uma greve. Não acostumado a discussões intermináveis, ele impôs sua autoridade com uma mão de ferro. Pelo que ele seria muitas vezes repreendido e ganharia muitos inimigos, mas jamais podemos questionar seu interesse. Graças a seu caráter incansável, disputas entre diferentes correntes eram emudecidas e o sindicato podia preservar independência total em relação ao Estado que tentava corromper os líderes sindicalistas.

Durante a adoção da Carta de Amiens, durante o congresso confederativo de 1905, nós lembramos que: "A CGT, para além de qualquer escola política, congrega todos os trabalhadores conscientes da luta para fazer desaparecer o trabalho assalariado e os empregadores... O congresso considera que esta declaração é um reconhecimento da luta de classes no domínio econômico que opõe os trabalhadores em revolta contra qualquer forma de exploração e opressão, tanto material quanto moral, estabelecida pela classe capitalista contra o proletariado".

Ação Direta


No movimento socialista em janeiro de 1905, Victor Griffuelhes deu a seguinte definição de ação direta: "Ação direta significa a ação dos próprios trabalhadores. Isto é, ação que seja diretamente exercida pelas partes interessadas. É o próprio trabalhador que dirige seus esforços; ele pessoalmente os exerce contra os poderes que o dominam, de modo a obter os benefícios que ele demanda deles. Através da ação direta, o trabalhador cria sua própria luta, ele a lidera, resolvido a não concedere a outrem a responsabilidade por sua própria emancipação".


Os sindicalistas revolucionários lideram a luta pela melhora das condições de trabalho para que "a luta diária prepare, organize e realize a Revolução" como Griffuelhes escreveu.

Ação direta, realizada por minorias ativas e conscientes, objetivando atingir os espíritos (como durante a greve geral de 1907 onde Paris se encontrou afundada na escuridão após uma ação de sabotagem por parte de eletricistas sindicalistas revolucionários). Ela deve impor a vontade dos trabalhadores sobre o empregador, o uso possível da justa violência proletária pode entrar nessa estratégia. "Atualmente, só há emancipação completa se os exploradores e patrões desaparecerem e se o cenário tiver todas as suas instituições capitalistas varridas. Tal tarefa não pode ser conduzida pacificamente, e muito menos legalmente! A história nos ensina que os privilegiados jamais sacrificaram seus privilégios sem serem compelidos e forçados a fazê-lo pelas suas vítimas revoltosas. É improvável que a burguesia possua excepcional magnanimidade e queira abdicar voluntariamente... Será necessário recorrer à força, a qual, como dito por Karl Marx, é parideira de sociedades". (Émile Pouget - A CGT)

O Mito da Greve Geral em Ação

Uma dura batalha entre a CGT e o Estado pela jornada diária de 8 horas de trabalho foi travada em 1904. A campanha culminou em uma demonstração de força no 1º de maio de 1906, que foi ativamente organizada por 1 ano. Todas as forças da organização foram lançadas na batalha pelas 8 horas. O contexto era, então, insurrecionista, o mundo do trabalho efeverscia após o drama da mina Courrières onde 1.200 mineiros foram encontrados mortos. 40 mil mineiros em Pas-de-Calais entraram em greve espontaneamente. A repressão não resolveu nada e a raiva se espalhou. Quase 200 mil grevistas se mobilizaram na construção (um bastião dos sindicalistas revolucionários), metalurgia, gráficas...o movimento culminou com 438.500 grevistas por toda a França! O governo tinha medo da guerra social iminente e da aliança entre as duas forças anti-sistema da época: o movimento sindicalista revolucionário e o movimento nacionalista (convergências observadas pelo professor Zeev Sternhell).

Antes dessa aliança, a República reagiu rapidamente, Clemenceau, nomeado Ministro do Interior, dirigiu a repressão. Griffuelhes e os principais diretores da CGT foram presos sem motivo (inclusive o tesoureiro Lévy que seria devolvido pela polícia). O 1º de maio foi acompanhado por uma importante mobilização dos cães de guarda da República que multiplicaram as prisões e dispararam contra a multidão de grevistas. Em acordo comum, autoridades e empregadores organizaram a demissão dos funcionários e trabalhadores mais ativos na ação direta, listas negras de militantes foram criadas para tornar sua contratação impossível.

Mas onde Clemenceau e seu sucessor A. Briand foram mais eficazes foi em corromper os líderes sindicalistas por meio de corrupção e na infiltração de provocadores (os arquivos da prefeitura policial estão cheios de seus relatórios sobre as atividades da CGT) que espalhavam descontentamento e desacreditavam a ação de sindicalistas revolucionários. Ademais, o agravamento do dissenso interno e as guerras de tendências criaram uma situação explosiva entre a liderança.

A Ruptura: O Proletariado contra a República

Foi o caso Draveil-Vigneux, organizado do zero por Aristide Briand, então Ministro do Interior que ateou fogo à pólvora. Uma demonstração de escavadores e ferroviários na região parisiense em 30 de julho de 1908 se transformou em uma revolta. Registra-se duas mortes entre os trabalhadores. A CGT clamou pela transformação da mobilização de trabalhadores em uma greve geral. Após uma marcha em Villeneuve-Saint-Georges eles lamentaram mais sete mortes. Com a ajuda de um agente provocador, o Ministro do Interior encontrou o pretexto para prender a maior parte da liderança da confederação, entre eles o secretário-geral Victor Griffuelhes, que permitiu que os traidores se beneficiassem de sua prisão para poder orquestrar um verdadeiro putsch.

A libertação dos líderes aprisionados não demorou, mas nas sombras os capangas de Briand, e notavelmente o tesoureiro Lévy (provavelmente corrupto) e Latapie, organizaram uma autêntica conspiração contra Griffuelhes, acusando-o abertamente de mau uso dos fundos. O congresso seguinte livrou Griffuelhes de qualquer suspeita, mas a crise foi aberta, e o amargurado secretário-geral se demitiu. Niel o sucedeu, eleito em 25 de fevereiro de 1909, como secretário-geral da CGT com os votos reformistas. Mas os sindicalistas revolucionários não lhe deram paz: seis meses depois Niel foi forçado a se demitir.

Ele foi substituído por Léon Jouhaux. Não é surpreendente que a tensão com o Estado começasse a emergir novamente em 1910. Em outubro, a greve dos ferroviários, situada no esquema de uma grande campanha contra a alta no custo de vida, fez Briand projetar a dissolução da CGT. Briand decidiu fazer um exemplo: o caso Durand. O secretário do sindicato dos carvoeiros de Havre foi condenado à morte por ações grevistas nas quais ele não teve qualquer envolvimento. Um vasto movimento de protesto foi iniciado.

Neste momento crucial de sua história, o mundo proletário estava majoritariamente oposto à República liberal. Ele ficava enojado com a atitude dos velhos dreyfusardianos (Clemenceau e Briand), que haviam convocado o proletariado a se mobilizar por justiça e, uma vez no poder, se revelaram assassinos do povo. Essa rejeição da democracia foi demonstrada até a guerra. A erupção da Grande Guerra foi uma derrota para os sindicalistas revolucionários. Após terem feito tudo para impedir a marcha rumo à guerra, o élan patriótico pela Sagrada União os tomou. Léon Jouhaux, na tumba de Jaurès, convocou os trabalhadores a se mobilizarem pelo regime. Essa mobilização em prol da Sagrada União marcou o fim do período heroico do sindicalismo de ação direta dentro da CGT, o qual, após a guerra foi tomado pelos burocratas que a transformaram na ferramenta reformista que conhecemos hoje. 

Fonte: Revista Rébellion, setembro de 2014.

13/02/2017

Wilfrid Dunwell - Arte e Sociedade

por Wilfrid Dunwell

Capítulo I de "A Música e a Mente Europeia"

Tradução por Andras Jucksch



Poucas pessoas podem ter adentrado uma catedral sem refletir sobre seu duplo aspecto, como uma obra de arte e como um espaço de adoração. Minha própria lembrança de uma pequena e belíssima igreja em Bruges é inseparável daquela de uma mulher que entrou com sua cesta de compras, ergueu seu filho a um genuflexório, rezou por um tempo e partiu. Uma catedral medieval pode exercer seu efeito simplesmente como uma criação artística, mas foi construída para o exercício de diversas funções sociais e religiosas. Além desses usos, era um símbolo de majestade eclesiástica e do orgulho comunal de uma sociedade feudal e burguesa. Seus vitrais carregavam uma mensagem religiosa àqueles que não podiam ler; suas esculturas e entalhamentos celebravam os poderosos ou imortalizavam as curiosas fantasias do escultor. Muito da música que ouvimos em concertos e transmissões servia originariamente a fins práticos: as Cantatas de Bach no serviço luterano, os Divertimenti de Mozart no entretenimento social. As pinturas que vemos em nossas galerias de arte formavam outrora parte do mobiliário natural de igrejas e palácios, realçando a importância e apelo emocional da adoração religiosa e o esplendor de um modo de vida. Estando assim tão integradas à sociedade, são expressões de sua “mente”, tanto quanto o são os sistemas filosóficos e científicos, ou as ações e movimentos que produzem os eventos históricos.

Os críticos de arte são cuidadosos para distinguir entre o efeito estético de uma obra de arte e sua origem ou propósito social. Especulações acerca da relação da pintura rupestre com a vida de seus criadores são uma questão separada da apreciação das pinturas em si. É assim em qualquer grau em retrospecto; talvez não tenha sido para o próprio artista Neolítico. Nas fases primeiras da civilização, a arte se encontrava intimamente ligada à magia, à religião e ao ritual; a música, a poesia e a vida eram inseparáveis na narração de conquistas heroicas em forma épica, ou expressão da emoção pessoal na canção popular. É somente quando obras sobreviventes e registros escritos perpetuam as criações do passado que uma noção de “arte” emerge como algo passível de admiração em sua forma autônoma, separada de sua função social. A mente criativa não fica contente com a repetição. As constantes renovações na música durante os longos séculos da vida monástica medieval demonstram como o estímulo da criação artística esteve ali agindo, embora o propósito religioso se mantivesse inalterado. Uma transformação estável foi empreendida pelo toque da mente artística nos materiais da música em si. A percepção de princípios artísticos se mostra ainda mais aguda quando as atitudes sociais e mentais estão mudando. Os arquitetos italianos da Renascença estavam profundamente conscientes de questões estilísticas quando se voltaram à sua herança Clássica em busca de orientação e inspiração. Ao absorver seus detalhes multiformes, admirar sua autoconfiança em termos de gosto e método e sentir o poder mobilizador de sua beleza, eles reforçavam sua concepção da arte como um mundo de experiência com suas próprias leis e visões imaginativas. Tal entusiasmo, compartilhado por escultores, pintores e poetas, encorajava a visão “profissional” da arte e, mais do que isso, a noção de que o gênio criativo pode transcender a mente geral de uma era, embora atendendo às suas necessidades e dependendo de seu patrocínio. Por uns três ou quatro séculos, durante os quais as criações de beleza foram valorizadas por sua contribuição para o prestígio, os interesses de artista e patrão coincidiram. A transição para modos de vida industriais e democráticos perturbou esse equilíbrio. A arte não possui agora qualquer função social geral; seu cultivo se torna uma atividade altamente especializada, e sua apreciação é limitada a relativamente poucos.

A apreciação está sujeita a mudanças tanto quanto os costumes sociais e estilos artísticos. No momento atual, em que a arte é tão pouco integrada ao modo predominante de vida, prevalece o distanciamento crítico. O entusiasmo da Renascença, a autoconfiança do século XVIII e a crença no progresso do século XIX deram lugar a uma atitude eclética, um desejo pela procura de valor artístico nos produtos de qualquer estágio da civilização. O crítico que aplica tal critério exclusivamente artístico não pergunta o que o artista fez mas sim como ele o fez. Ele usa o termo “significância” em detrimento de “beleza”, uma vez que essa última pode significar coisas amplamente diversas para diferentes pessoas. Mover-se de sala a sala em um museu ou galeria de arte é experienciar o impacto vital que é produzido por toda arte, não simplesmente aquela de um período. Uma pessoa pode encontrar seu ideal de beleza na harmonia serena de um vaso ou estátua grega, outra nos nítidos contornos de um mosaico Bizantino. Os gostos podem variar, mas o poder de comunicação da experiência estética reside nas criações artísticas em si.

Outra questão surge se formos andando pela galeria de arte e dissermos: “esta pintura transmite um sentimento de êxtase espiritual, ou aquela, de sofrimento mordaz”. Para muitos, essa é a característica essencial da obra. Para o crítico que aplica um critério puramente estético, o “conteúdo” emocional da pintura é uma coisa bastante separada de sua “forma significante”. A tarefa do pintor é reconciliar ambos esses elementos, para representar o que vê na natureza e experiência humana, e ao mesmo tempo atingir a ordem formal que confere ao seu trabalho a qualidade de arte. Uma situação similar se dá na música, embora sons musicais não representem nada na natureza. A música tem, com frequência, sido descrita como uma linguagem das emoções, mas em bases meramente estéticas seria mais preciso defini-la como a arte de dar ordem significativa aos sons. Nessas condições, uma obra musical pode derivar seu valor de seu significado expressivo e emocional, ou então simplesmente da organização musical de seus sons. Como ocorre, a música serviu um longo período de aprendizagem como um meio de comunicar pensamentos externos a si própria antes de adquirir as formas de ordem que a tornaram algo importante tomado por si só. Das antigas entoações de cânticos e canções heroicas ao complexo entrelaçar de vozes na polifonia, era quase exclusivamente um veículo às palavras — a música de dança seria a única exceção, e mesmo aqui a organização era imposta de fora. Através de tais associações a música acumulou as conotações emocionais que hoje nos parecem inseparáveis de sua natureza; mas em todo caso ela deve possuir sua própria ordem significativa, e isso pode existir sem qualquer “sentido” subordinado.

Valorizar uma obra artística por sua significância “pura” ou por seu conteúdo emocional é uma questão de temperamento, gosto e treinamento pessoais. É obviamente possível combinar as duas abordagens. Mas tão logo consideramos o argumento concreto da arte, somos postos em contato com o pensamento e as experiências do artista e seu ambiente. Nossa apreciação é realçada se compreendermos suas intenções e sua configuração mental. E uma vez que o impulso à criação artística não se restringe a tempo ou espaço algum, tampouco a quaisquer estágios de desenvolvimento civilizacional, deveremos encontrar arte com valor significativo em qualquer um desses estágios. A vida social revela uma evolução de formas simples a formas complexas; isso não constitui em si um critério de valor. A arte, como uma expressão daquela vida social, talvez testemunhe uma evolução paralela, mas isso não afeta necessariamente seu valor; ela pode ser boa ou ruim em qualquer etapa. Assim sendo, a evolução no sentido de progresso não possui qualquer relevância à arte em seus aspectos sociais. Possui relevância, contudo, para o desenvolvimento dos recursos da arte em si, os quais são capazes de possibilitar experiências artísticas que não seriam alcançáveis de outro modo. Existem portanto duas maneiras de comparar nossa reação a uma obra simples como uma canção folclórica e outra complexa como uma sinfonia. A primeira seria perceber que cada uma constitui algo único, garantindo perfeita satisfação estética. Que comparação seria possível entre coisas tão diferentes? Esse é o julgamento do purista estético. A segunda (que seria a do hipotético “homem sensato”, esse tão útil artifício ficcional) seria reconhecer que a sinfonia desencadeia registros de pensamento e emoção que não são possíveis em uma canção popular: as interrelações fascinantes de uma grandiosa estrutura musical, os contrastes de humor, de tensão e repouso, e a riqueza adicional da cor e sonoridade orquestral. Uma não é melhor do que a outra, mas a sinfonia é resultado de um processo de evolução sem o qual tais experiências variadas seriam inatingíveis. A diferença não é meramente uma de tamanho. Uma longa sinfonia não oferece necessariamente experiência mais rica do que uma curta, muito embora talvez precisa de um espaço mais amplo para desenvolver suas implicações. A diferença é de qualidade: a sinfonia pode fazer o que uma canção não se propõe a fazer. Isso é trabalhar o óbvio, mas é uma qualificação necessária da visão que rejeitaria a concepção de evolução artística por completo. Essa talvez tenha sido uma atitude natural em um momento em que a pesquisa histórica começava a iluminar períodos remotos e negligenciados. Não há mais motivo para temer que qualquer parte de nossa herança cultural seja subestimada.

Há mais razão para apreensão em uma noção superficial que possui certa circulação, a de que todas as artes compartilham características comuns em cada época. Isso dá origem a uma nomeação tendenciosa e ilusória de períodos (“Música Renascentista”) e a atribuições, a uma arte, de qualidades distintivas de outra. Também assume que as artes acompanham uma à outra passo a passo em seus respectivos desenvolvimentos técnicos, que a música de Pérotin, por exemplo, seria comparável à arquitetura da Notre-Dame de Paris onde foi executada. Tais noções não têm qualquer relevância para o desenvolvimento histórico concreto e as características ricamente variadas dos povos europeus.

A arte exerce seu impacto na sociedade pois emana de níveis mais profundos em que seres humanos compartilham uma natureza comum. O artista difere do artesão por sofrer um impulso emocional que o guia à atividade criativa. Ele não pode dispensar a experiência técnica do artesão; os construtores de catedrais góticas testemunharam o colapso de muitas de suas torres centrais antes dessa lição ser aprendida. Como o artesão, o artista deve ter a habilidade de controlar e dar ordem aos elementos materiais de seu meio; atividades mentais e manuais contribuem grandemente para tal fim técnico. Mas há um aspecto da obtenção da ordem que jaz a uma camada mais profunda que a técnica no sentido de habilidade adquirida. A mente humana está constantemente recebendo impressões através dos sentidos, e a parte dela que chamamos memória não está de modo algum totalmente sob nosso controle consciente. As impressões são armazenadas, e, com ou sem nossa vontade, interagem umas com as outras para produzir novas combinações e assim tornar-se parte de um amálgama total da experiência. É dessas fontes que o artista deriva as ideias germinais que são a base de sua criação final. Toda pessoa difere de todas as outras na soma de suas experiências e em seus poderes de absorção. Toda pessoa também compartilha algumas características comuns com outros membros da comunidade a que pertence. Uma plateia de europeus ouvindo uma sinfonia de Beethoven mostrará graus variados de resposta enquanto indivíduos, mas como um grupo eles compartilharão um entendimento comum daquela convenção musical particular. O mesmo não pode ser dito de um grupo de ouvintes orientais. Seu arcabouço de impressões foi construído dentro de convenções que excluem a europeia.

A convenção artística é então uma forma de ordem que alcançam as mentes criativas, em parte por meios técnicos cônscios, em parte por processos moldadores preliminares, involuntários se realizando abaixo do nível consciente. A extensão desse esforço consciente difere, é claro, com diferentes artistas; os cadernos de esboço de Beethoven demonstram os processos reais de trabalho, etapa por etapa, enquanto a espontaneidade de Schubert é um mote. Mas seja qual for o grau de técnica consciente na obtenção da ordem, não há dúvidas de que o ímpeto criativo que é a força condutora impulsionando o artista a criar vem de uma fonte ainda mais profunda, do vulcão, por assim dizer, que existe nas profundezas de toda personalidade humana. Esse substrato se expressa, no nível mais baixo, em paixões e instintos animais que exigem satisfação. O indivíduo normal os liberta em relacionamentos pessoais, e suas energias superabundantes podem ser gastas no esporte, em jogos e hobbies. A saída para tipos mais assertivos talvez esteja em atividades competitivas como a guerra, a política, os negócios. Para outros tipos a saída pode ser encontrada em perseguições intelectuais que os conduzem a uma descarga de energia muito além da mínima necessária para uma vida confortável. Todas essas atividades derivam da necessidade vital sentida por cada pessoa de preencher sua personalidade, conquistar, tornar-se potente.

Um novo fator entra em jogo no caso do artista. Ele não apenas se mostra capaz de fazer, mas de obter estilo em sua maneira de fazer. Essa é uma das maneiras em que ele supera o artesão. Ele não somente cria, mas cria algo único, que possui significância por sua imaginação criativa. No interior dele repousa uma ideia germinal latente, ele é guiado por uma compulsão emocional para desenvolvê-la, ele possui a habilidade técnica para comunicá-la, e uma obra de arte vem ao mundo. Mas não termina aí. Ele vive numa comunidade cujos membros cresceram com experiências similares às dele próprio. Eles compartilham seu impulso expressivo, em algum grau; possuem um estoque de impressões que está fadado a coincidir com o dele em muitos pontos, e quando estão de frente para a obra artística terminada, que traz suas próprias aspirações a um foco, são impelidos a se identificar com o artista e desfrutar da satisfação vicária da criação. A experiência artística se completa na resposta emocional do recipiente. Aqui jaz o poder da arte, na relação sutil entre o criador e o pretenso criador. Por meio de sua imaginação superior, o artista dá uma nova interpretação às experiências de vida comuns, e assim amplia a visão de todos que recebem sua comunicação. Ele o faz não como um mestre ou pregador ao nível intelectual, mas por um lampejo de esclarecimento que revela ao homem ordinário a elevação e profundidade de sua natureza. O artista nos toca nas regiões mais íntimas de nossa experiência. Podemos não alcançar todos o poder e o sucesso, ou nos deslumbrar com o intelecto e a beleza, mas todos nós vivenciamos desejos e desapontamentos, alegrias e tristezas. Em algum grau, todos nós sentimos nosso desamparo em um mundo de estranhos acasos. Alguns depositam confiança na concepção religiosa de um mundo que transcende este mortal. Na arte, contudo, as provas e os medos mesmos desse mundo presente são transmutados em beleza e elevados a um plano onde o sofrimento individual perde sua aplicação meramente pessoal.

O valor do artista para uma comunidade reside portanto nos dons que ele traz a ela através de sua imaginação, superando o meramente útil, e assim contribuindo para a herança permanente da civilização. Ainda que tais dons sejam individuais e preciosos, o artista depende da sociedade em que vive em um aspecto essencial. Seja qual for sua habilidade latente, ele não é capaz de desenvolvê-la em isolamento. A tradição corporativa é a base de seu ofício, e a demanda popular garante a oportunidade para o seu exercício. As ideias e ideais de uma comunidade ditam as formas e a moldura dentro das quais o artista opera. É ele quem as dota de significância artística, mas antes de tudo depende delas para a direção tomada por seus próprios pensamentos e intuições. Ele também depende da sociedade para os veículos físicos da expressão de tais pensamentos nos termos de sua arte particular. Precisa de materiais e de trabalho para seus edifícios e seus adornos, e de recursos cada vez mais elaborados para a execução de sua música. Essas necessidades materiais foram sempre providas pela igreja ou corte, pelo município ou patrono privado para dar continuidade a seus ideiais ou atingir um estilo de vida mais abundante. Sob essas condições o artista pode trazer seu trabalho à fruição; na ausência de tal ambiente, seu gênio deve repousar dormente. A vida cultural da Europa é a história de incontáveis parcerias desse tipo entre artista e sociedade.

09/02/2017

Dario Durando - A Redescoberta da Identidade Étnica

por Dario Durando



Os eventos monumentais que se seguiram à queda do Muro de Berlim (9 de novembro de 1989) e à dissolução formal da União Soviética (25 de dezembro de 1991) deram origem a uma ordem geopolítica radicalmente nova. Eles queriam não só acabar com o mundo bipolar e com a partição da Europa como resultado dos acordos de Yalta e Potsdam, mas também a exaustão de um ciclo turbulento com mais de 70 anos de idade, que definiu um século de violência sem precedentes. O fim desse terrível período não significou o "fim da história" ou o desaparecimento da força nas relações entre Estados. Ele implica, porém, uma redefinição daquelas relações geopolíticas levando a uma evolução mais geral do pensamento e dos costumes.

O que está se desenvolvendo nas relações sociais e políticas, especialmente a nível internacional, é uma Weltanschauung que aborda os problemas do Estado e da sociedade muito diferentemente da maneira pela qual se lidou com ela no século XX. Uma das características dessa nova Weltanschauung é a redescoberta de valores ligados à identidade "étnica" (entendida, primariamente, em um sentido cultural).

Um Novo Sistema Internacional Transmoderno

Esses novos desenvolvimentos tem sido descritos como "uma civilização de política internacional". [1] Enquanto esssa caracterização oculta traços utópicos questionáveis, ela corresponde a desenvolvimentos internacionais atuais:

1 - A crescente abrogação do princípio tradicional do direito internacional no que concerne a soberania limitada dentro das fronteiras do Estado. Especificamente, há uma tendência pela comunidade internacional de exercer um tipo de tutela para salvaguardar direitos humanos.

2 - Esforços para constituir uma "nova ordem mundial" baseada no consenso de todos os sujeitos das relações internacionais, todos tendo sua própria legitimidade intrinsecamente "democrática". Os EUA parecem ter ideias relativamente claras sobre a configuração de uma "nova ordem mundial". É improvável que essas ideias, que pressupõem a retenção e fortalecimento da hegemonia americana, será apreciada por europeus e japoneses. É claro, porém, que a desintegração da velha ordem bipolar terá que ser seguida por um novo sistema de relações internacionais.

3 - O uso de força militar coletiva (dentro da estrutura da ONU, EC ou CSCE) para a manutenção da paz. O fato de que as elites políticas europeias se provaram pateticamente desiguais no que concerne a tarefa na ex-Iugoslávia não exclui a necessidade de intervenção militar em várias situações para impedir violações de direitos humanos e conter violência.

4 - O deslocamento do conceito estreito de segurança nacional, legado da política de poder dos séculos XVIII e XIX, em favor de defesa coletiva ou, melhor dizendo, segurança coletiva (já que é inconcebível que hoje qualquer Estado além dos EUA possa equiparar suas demandas de segurança por conta própria ou dentro do contexto de um sistema de alianças tradicionais).

5 - Finalmente, a transição gradual da soberania dos Estados nacionais para organizações supranacionais, e uma aceitação de limitações de natureza contratual sobre o exercício da soberania.

Durante os últimos poucos anos tem havido uma transformação da comunidade internacional de um arranjo hobbesiano de entidades permanentemente em pé-de-guerra para uma "sociedade" de Estados partilhando alguns princípios e buscando, ainda que gradualmente, impor padrões comportamentais normativos. Ainda que a dissolução de uma velha ordem de 40 anos crie mais problemas do que resolve e seja um processo lento e dificultoso, ela agora parece irreversível. Isso é porque este é um processo determinado não por causas endógenas do sistema internacionai mais por uma evolução mais geral e pervasiva que poderia ser designada como a transição à era transmoderna. [2]

Essa era transmoderna não reconhece dogmas políticos e sociais, grandes objetivos coletivos baseados em fundações mítico-simbólicas ("a pátria" ou "o proletariado") e foca em áreas limitadas da experiência humana relativas ao comportamento individual: bem-estar, preocupações hedonistas e, mais geralmente, o desenvolvimento da personalidade individual. Isso envolve coisas que são, de várias maneiras, cruciais precisamente por elas são as presssuposições de questões individuais prementes, i.e., consciência ecológica, as necessidades dos fracos, a rejeição do imperialismo e das atitudes beligerantes, o desejo sobrepujante por uma "boa administração" e mais participação política direta. Isso explica, entre outras coisas, o crescimento eleitoral explosivo da Lega Nord na Itália.

A Ameaça de uma Padronização Universal

O outro lado dessa moeda é o absoluto vazio da "pós-modernidade" e a dissolução de estados monádicos armados uns contra os outros. Este processo caminha junto, não só de uma crescente internacionalização da economia mas com a globalização da cultura (por sua vez gerada por uma crescente interpenetração de constelações axiológicas). O resultado é a ameaça comumente denunciada [3] da adoção global do modelo cultural dominante, o modelo americano, que é hegemônico na medida em que emana da sociedade mais rica e da economia mais próspera. [4] Essa adoção se traduz em uma homogeneidade "cosmopolita" no sentido spengleriano: vazia, falsa e superficial. [5] Para usar uma metáfora abusada, mas vívida, ela se traduz em uma "EuroDisney global", ou seja, o triunfo do universalismo abstrato ahistórico encastelado no Iluminismo. [6]

O resultado é um mundo reduzido a um imenso mercado unificado pelo fluxo de bens, serviços e capital. Ele é culturalmente padronizado porque é permeado por uma rede informacional global que é produto da indústria cultural anglossaxã hegemônica, e ela transmite com enorme impacto simbólico os valores de uma sociedade consumista. Politicamente, ela é estruturada hierarquicamente com os EUA no topo sempre prontos a brandir o famoso "big stick" de Theodore Roosevelt.

Diferenças Étnicas como Fontes de Identidade


A transição rumo à transmodernidade constitui um processo histórico irreversível da mesma magnitude que a industrialização (que ela espelha, na medida em que as principais características da transmodernidade no nível sócio-econômico é a centralidade de serviços baseada na informação). O oposto pode ser dito da subjugação de todo o planeta a uma ideologia pós-moderna que vê a economia como a base da condição humana, e diferenças ou especificidades culturais como desvios menores e bizarros de uma "normalidade" social global. Essas diferenças e especificidades, porém, constituem o obstáculo mais poderoso à difusão da ideologia universalista e economicista, e à transformação do mundo em sua imagem.


A especificidade cultural é étnica em caráter e deve ser abordada no contexto de uma oposição organizada à padronização universal. Aqui o componente antropológico e biológico da etnicidade é secundário, porque ele é irrelevante para interações sociais. O que é importante é algo mais: o sentido de pertencimento étnico, ou seja, uma identificação étnica gerada por um sistema específico de produção cultural, cimentado por uma linguagem comum entre os membros de um grupo étnico. [7] O que é importante sobre a dimensão étnica dentro do contexto da sociedade global contemporânea é sua habilidade de fornecer uma "fonte de identidade", um mecanismo de identificação baseado primariamente no pertencimento cultural e linguístico, e apenas secundariamente em uma "comunidade de sangue". Em outras palavras, o pertencimento étnico é a forma final da solidariedade interpessoal generalizada e, portanto, a instância maior do tipo de elo orgânico e "comunitário" descrito por Ferdinand Tönnies.

O enraizamento do indivíduo dentro de um ambiente "comunitário" caracterizado por fortes laços culturais e linguísticos representa o antídoto mais eficaz para a atomização e "anomia" típicas de sociedades que Tönnies e Durkheim classificaram como "mecanicistas" e que hoje podem ser chamadas pós-modernas: unificadas no nível global e artificial porque fundadas em uma sociedade vender-produzir, dirigida a partir do centro de produção de cultura e de informação. Nessa sociedade global, o indivíduo está cada vez mais sozinho. Ele está perdido na imensidão do ambiente social e exposto a um fluxo ininterrupto de informação, usualmente o produto de outra informação. Ele está se tornando cada vez menos apto a determinar seu próprio destino e permanece manipulado por aqueles que possuem o poder supremo: a circulação de informação.

Os laços comunitários peculiares ao pertencimento étnico são radicalmente opostos a todos estes aspectos da sociedade globalizada. A experiência da etnicidade reestabelece o indivíduo no centro de uma rede de relações sociais diretas e imediatas, imediatas como a comunidade de cultura, tradição e linguagem. Ela permite a recuperação do contato com a realidade, para além do véu mediador da informação global autoperpetuadora. Ela minimiza a influência de poderes decisórios estranhos à comunhão étnica e, portanto, permite uma participação mais substancial pelo indivíduo singular nos processos de formação de vontade coletiva.

Consequentemente, o assim chamado ressurgimento étnico, a reapropriação por vários grupos étnicos de sua própria identidade, a reavaliação das "raízes" de povos e comunidades (ou seja, os traços distintivos de suas culturas específicas), constitui a arma mais poderosa contra o nivelamento global, a obliteração de diferenças, a fusão despersonalizadora típica do "caldeirão" da sociedade global. Ela é uma arma poderosa contra a ideologia universalista da pós-modernidade, mitologizada pelos seguidores do chamado "pensamento fraco".

Ademais, se a redescoberta da dimensão étnica significa trazer o indivíduo de volta para o centro das relações sociais (como o ator de relações interpessoais mais ricas, o sujeito interagindo com uma realidade pendente, e como o "cidadão" ativamente envolvido no processo de tomada de decisões de sua própria comunidade), como pode ser negado que ele está alinhado com a tendência da transmodernidade de centralizar todos os aspectos da realidade ao redor da experiência individual e minimizar, senão suprimir, o condicionamento externo? A linha específica de desenvolvimento de uma abordagem transmoderna pode ser vista como constituída precisamente pela redescoberta da etnicidade: a revolução "étnica", e portanto federalista e autonomista, como alternativa global à crise da velha ordem e à ameaça de uma nova ordem "pós-moderna" que obliteraria todas as diferenças.

A Revolução Étnica e a Transição para a Transmodernidade


Graças aos recursos que eles distribuem, sistemas contemporâneos estimulam em indivíduos e grupos a necessidade para autorrealização, comunicação e apropriação do sentido da ação, mas eles também os expõem a fragmentação e conformidade. [9] Solidariedade tradicional, identificação étnica e o particularismo da linguagem e da cultura podem satisfazer as necessidades de indivíduos e grupos de afirmar sua própria diferença em um contexto caracterizado por relações sociais fortemente impessoais governadas pela lógica de organizações. Pertencimento e "naturalidade" primárias são postas em jogo em oposição à cultura de massas. A identidade étnica oferece a indivíduos e grupos certeza considerável em um mundo incerto. Se território é acrescentado à etnicidade, juntos eles constituem as dimensões mais profundas da experiência humana. O local de nascimento não só tem o poder da tradição ao seu lado, ele conta com um elo ainda mais profundo no qual biologia e história se combinam. É por isso que a combinação de etnicidade e território tem o poder explosivo de mobilizar as energias mais interiores. Enquanto os outros critérios de pertencimento enfraquecem e recuam, a solidariedade étnica responde a uma necessidade por uma identidade primariamente simbólica. Ela fornece coberturas que possuem toda a consistência da linguagem, da cultura e da história antiga. O componente inovador da identidade étnica-nacional tem um carater peculiarmente cultural porque o apelo étnico-territorial desafia a sociedade complexa em relação a questões fundamentais tal como a direção da mudança bem como a produção de identidade e sentido.


Enraizada em uma herança de relações e símbolos sociais, a diferença aborda a totalidade da sociedade sobre um de seus dilemas radicais: com osalvar o sentido das ações humanas e a riqueza da diversidade em um contexto global. A linguagem tradicional se opõe à funcionalidade asséptica da linguagem tecnológica e à novilíngua da linguagem informática e à publicidade. Ela articula as muitas facetas da experiência humana, as várias nuances que tem sido sedimentadas nas camadas mais profundas da cultura humana. A perda dessa riqueza é a perda da humanidade enquanto tal. Nessa medida, movimentos étnico-nacionais falam para todos, felizmente, ainda em nossa própria linguagem.

Um amplo exame das diferentes abordagens ao problema da etnicidade recentemente concluiu que a visão clássica, segundo a qual a etnicidade não é nada além de um "fenômeno residual na transição da tradição à modernidade" e está, portanto, destinada a sucumbir ao avanço inexorável da "secularização", está errada e deve ser abandonada. Ao contrário, "divisões, mobilização política e amplas formas de organização social predicadas em bases étnicas não são um fenômeno residual, mas continuarão a ter um papel importante em processos de mobilização coletiva e em sistemas de ação. Sua importância na sociedade industrializada aumentará. Elas devem ser consideradas como elementos constitutivos dessas sociedades." [10] Assim, é necessário começar a pensar em termos de pluralismo etnoterritorial. É ilógico ir do Estado, da nação e do "povo" ao indivíduo e dizer que as comunidades étnicas dentro delas não contam. É injusto aceitar ou assumir status e direitos para Estados, nações e "povos", e recusá-los para comunidades étnicas historicamente fundamentadas. [11]

O objetivo deve ser preservar, redefinir e fortalecer pontos referenciais concretos e visíveis, formações étnicas como fontes de identidade simbólica e de um forte senso de pertencimento, entre o indivíduo e a vastidão "uniforme" da sociedade global.

Grupos Étnicos e Jacobinismo Abstrato

O termo "grupo étnico" é usado aqui para designar certas realidades biológicas, linguísticas, culturais e territoriais de modo a evitar a palavra "nação", um conceito viciado por ambiguidades terminológicas. Essas ambiguidades são um resultado do fato de que durante os séculos XIX e XX ideologias b urguesas tem abusivamente aplicado o rótulo de nação (que poderia ser considerada como sinônimo para "grupo étnico" já que a etimologia se refere simplesmente ao local de nascimento) a algo além de um grupo étnico singular ou nação. A nação dos jacobinos, dos romanticistas e, finalmente, dos nacionalistas se refere ao grupo étnico majoritário, ou hegemônico que, por poderio militar, conquista, domina e usualmente assimila outros grupos étnicos. Este não é o caso apenas na França, mas também na Espanha, onde por séculos o que passou como espanhol (ou seja, castelhano) era, na verdade, galego, catalão ou até basco.

As coisas são mais complexas, mas é suficiente apontar que grupos étnicos aqui significam comunidades fundadas primariamente em laços culturais, linguísticos e territoriais, a cultura dos bretões e não aquela que, emanando ao longo dos séculos da Ile de France, se tornou hegemônica na Bretanha; a língua falada em Barcelona, não a ainda imposta por lei tão recentemente quanto 15 anos atrás; o território da ilha chamada Irlanda, não as duas seções distintas na qual ela ainda se divide hoje.

Em alguns casos, é claro, um grupo étnico pode, de fato, corresponder a uma nação no sentido jacobino oitocentista (tal como, por exemplo, Portugal e Dinamarca). Deve-se, porém, manter em mente que a relação entre um grupo étnico e a nação, e, portanto, a relação entre um grupo étnico e o Estado-Nação unitário, não é óbvia. Não só pode um Estado ser multiétnico (por exemplo, a Suíça), mas ele também pode sê-lo sem admiti-lo (como no caso da França que, até bem recentemente, não reconhecia nem mesmo a diversidade da Córsega [12]), ou admitem sem deduzir quaisquer consequências (como no caso do Reino Unido, que não nega a existência de um grupo étnico escocês e galês distintos, mas jamais sonharia em conceder qualquer tipo de autonomia).

Federalismo, Regionalismo e Independência

A redescoberta de um senso de pertencimento étnico que reflete a necessidade do indivíduo por identidade na sociedade atomizada de hoje é o primeiro e mais importante passo na contraposição da cultura de diferenças e especificidades à ideologia universalista e padronizadora da pós-modernidade (exemplificada pela ubiquidade da produção audiovisual americana). Mas onde e como a dimensão étnica redescoberta e revitalizada (ou simplesmente preservada) se encaixa nas relações entre Estados, nações e povos? Que lugar devem os grupos étnicos ocupar no contexto da nova ordem inter-Estado que mais cedo ou mais tarde terá que ser construída sobre as ruínas da velha?

A preservação da identidade étnica não significa, necessariamente, autodeterminação. Ela não significa a proliferação descontrolada de entidades estatais predicada em bases monoétnicas, de modo a transformar todo o planeta em uma colcha de retalhos de pequenos Estados, mais ou menos etnicamente "puros" e protegidos por barreiras externas e defesas recíprocas. Esta não seria uma sociedade mundial, global em dimensões e objetivos, mas ricamente articulada com um florescimento de diferentes experiências e particularidades. Ao contrário, isso seria uma réplica ruim do sistema oitocentista de Estados-nações, suspeitosas uns dos outros e prontas a ir à guerra sempre que disputas de fronteiras surjam.

Cada grupo étnico tem que ocupar seu lugar na comunidade de povos, o lugar que a história, a geografia e a dinâmica das relações interculturais reservaram para eles. Mais concretamente, há (e devem ser os mais numerosos) grupos étnicos que constituem historicamente e culturalmente o núcleo hegemônico (ou seja, a nação no sentido jacobino) de um "Estado unitário nacional" cujo modelo oitocentista ainda prevalece. 

Grupos étnicos franceses (bretões, flamengos, alsácios, provençais) e italianos (lombardos, nortistas pertencendo ao grupo vêneto com friulianos, os sul-tiroleses sendo algo inteiramente diferente) podem, claramente, ser localizados dentro do Estado ao qual eles efetivamente pertencem, cuja estrutura tem que ser transformada em uma direção federalista de modo a permitir que cada um deles preserve suas características culturais e linguísticas (que, entre outras coisas, se traduz em uma contribuição para a riqueza cultural e para a diversidade do "povo francês, "povo italiano", etc).

Dentro do contexto dos Estados unitários existentes, o federalismo é a solução mais aconselhável para a proteção e desenvolvimento de especificidades étnicas. É uma questão de um desenvolvimento particularmente adequado para a Itália, onde a aquisição de uma linguagem comum (obtida provavelmente com o custo de um empobrecimento cultural substancial) não pode ocultar as diferenças significativas dentre os vários componentes étnicos da "nação italiana". Estes são o resultado de milhares de anos que precederam a unificação centralista apressada tendo como modelo a experiência francesa. Porém, enquanto uma proposta abertamente federalista é sempre preferível em abstrato, é claro que em países como a França, com uma tradição centralizadora multissecular, isso não tem qualquer chance de ser considerado por muitas gerações ainda. Ali, o modelo adequado deve ser diferente e menos ambicioso: será uma questão de regionalismo, um conceito muito mais avançado do que a atual divisão do "Hexágono" em regiões predicadas meramente na descentralização administrativa. Isso demandará um esforço para fazer com que as regiões coincidam com realidades históricas e culturais reais. Houve recentemente uma proposta de grupos extrenos aos grupos autonomistas saboianos de reunir os dois departamentos da Saboia como uma região autônoma que reconstituiria a unidade terrotiral que durou até 1860. Isso também envolveria uma transferência de poder às regiões, não menos importante do que a desfrutada pelas regiões italianas com status especial.

Uma terceira e ainda diferente situação: grupos étnicos que, por causa de características antropológicas, culturais e linguísticas profundamente diferentes das da nação hegemônica da qual eles tem historicamente sido parte, e por causa da força de suas coberturas em um dado território, podem e devem legitimamente objetivar alguma forma de autogoverno dentro de um continuum que vai de ser parte de um Estado federal (renunciando a soberania apenas para política externa e segurança) a uma confederação de Estados soberanos, à pura e simples independência. Os escoceses e bascos pertencem a essa categoria (da mesma maneira que eslovenos, croatas e eslovacos optaram por independência total). Como no caso da França, uma nota de precaução se faz necessária aqui. Como a independência é extremamente improvável, a defesa e desenvolvimento da identidade étnica deve ser confiada a meios menos extremos, um hipotético status federal para a região basca, uma autonomia regional semifederal para a Escócia (cuja devolução tem oposição insistente dos governos conservadores).

Há ainda outra tipologia: cooperação transfronteiriça entre entidades étnicas dentro do contexto de Estados federais ou, pelo menos, regionalizados. É uma questão de relegar o autogoverno local, baseado na soberania federal parcial ou em autonomia regional, mais poder para regular questões por meio de normas geradas por acordos "transfronteiriços" com Estados federais ou regiões pertencendo a outros sujeitos soberanos. [13] Em questão estão aqueles assuntos com relevância transfronteiriça, ou seja, grandes infraestruturas, particularmente nos transportes, no meio-ambiente, a exploração de recursos aquíferos, etc. Tal esquema institucional já está fornecido pela "Convenção de Madri" assinada em 21 de maio de 1980 lidando com coletividades e autoridades transfronteiriças ou territoriais promovida pelo Conselho da Europa. [14]

A Federação Europeia como Casa Comum dos Povos Europeus

Para os europeus o único esquema institucional dentro do qual a recuperação do pertencimento étnico pode ocorrer é o federal. A evolução atual rumo a tal ordem indubitavelmente não produzirá resultados imediatos por causa de considerável oposição interna. Ainda assim, essa evolução finalmente superará (provavelmente no avançar do século XXI) todos os obstáculos porque somente um amplo agregado continental com enormes recursos econômicos, financeiros e culturais será capaz de, no futuro, competir com sucesso com outros polos da política mundial, tal como o Círculo do Pacífico e a América do Norte.

A futura federação europeia será fundada no princípio de subsidiariedade e terá que delegar não só aos "Estados-nações", mas também e acima de tudo a autoridades regionais, o poder necessário para proteger a identidade étnica dos vários grupos de cidadãos europeus. Dentro desse esquema uma representação específica de subdivisões étnicas ou regionais singulares (incluindo casos nos quais as regiões tem objetivos meramente administrativos) encontrará um lugar próximo ao órgão parlamentar eleito por meios de um sufrágio representativo, direto e universal de todos os cidadãos sem distinção (o parlamento europeu atual). O Comitê de Regiões projetado pelo Tratado de Maastricht levará a um verdadeiro "Senado das Regiões da Europa" designado por parlamentos, assembleias e conselhos de todas as identidades etnorregionais existindo dentro de Estados membros da Comissão Europeia.

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1. Hanns W. Maull, “Zivilmacht Bundesrepublik Deutchland. Vierzehn Thesen fur eine neue deutsche Aussenpolitik,” in Europa-Archiv, No. 10 (1992), p. 269ff.

2. Aqui "transmoderno" se refere ao problema resultante do colapso da "modernidade" (baseada nos valores iluministas burgueses, toda a economia industrial e o liberalismo político e econômico); enquanto "pós-moderno" designa aqueles fenômenos sociais e culturais que são o produto final da "civilização moderna" e não parte de sua superação. Sobre a "pós-modernidade" como mera dissolução da modernidade, ver Gianfranco Morra, ll Quarto uomo. Postmodernita o Crisi della Modernita (Rome: Armando, 1992), p. 22:

3. Ver Serge Latouche, L’Occidentalizzazione del Mondo. Sagaio sul Significato, la Portata e i Limiti dell’Uniformazione Planetaria (Turin: Bollart Boringhieri, 1992).

4. Sobre sintomas do declínio cultural, econômico e social americano, ver,  Roberto Menotti, “I1 Dibattito sul ‘Declino Americano’,” in Politica Internazionale, Nos. 1-2 (1992) p. 115 ff.

5. Ver Oswald Spengler, ll Tramonto dell’Occidente (Milan: Longanesi, 1981), p. 922.

6. Ver Carlo Gambescia, “Comunitarismo contro Universalismo. Per una Critica del Paradigma Occidentale della Modernizzazione,” in Trasgressioni, No. 14 (January-April 1992), p. 22ff.

7. Apesar de um pouco datada, a definição de Anthony Smith de "comunidade étnica", originalmente formulada em 1981, permanece útil. Ver ll Revival Etnico (Bologna: 11 Mulino, 1984) p. 114.: “Um grupo social cujos membros partilham um senso de origens comuns, reivindicam um passado histórico, e um destino distintivo e comum, possui um ou mais atributos peculiares, e percebem um senso de unidade e solidariedade coletivas". Naturalmente, um dos elos "primordiais" para a formação de um senso de comunidade étnica é a linguagem. Sobre “etnopolítica,” see James Kellas, Nazionalismi ed Ernie (Bologna: I1 Mulino, 1993).

8. Relembrem a distinção entre comunidade e sociedade delineada no início do segundo capítulo de sua famosa obra: "A teoria da sociedade passa da consturção de um grupo de homens que, como na comunidade, vivem e habitam pacificamente um junto ao outro, não mais essencialmente ligados, mas separados. Eles são separados apesar de todos os laços. Na comunidade, eles permanecem unidos, apesar de todas as separações". Ver Ferdinand Tonnies, Comunita e Societal (Milan: Comunita, 1963), p. 83.

9. Parafraseado de Alberto Melucci e Mario Dani, Nazioni senza Stato. I Movimenti Etnico-Nazionali in Occidente (Milan: Feltrinelli, 1992) p. 184-96. Os dois autores entenderam com notável lucidez a essência libertadora do ressurgimento étnico.

10. Daniele Petrosino, Stati Nazioni Elnie. ll Pluralismo Etnico e Nazionale nella Teoria Sociologica Contemporanea (Milan 1991), pp. 19 and 173.

11. V. Van Dyke, “The Individual, the State, and the Ethnic Communities in Political Theory,” in World Politics, Vol. XXIX (1977), p. 369. Cited in Petrasino, op. cit., p. 203.

12. A França ainda rejeita oficialmente o conceito de um "povo corso dentro do contexto do povo francês". Ver a decisão do Conseil Constitutionel n. 91-290 DC of May 9, 1991, que derrubou como inconstitucional o Article 1 de uma lei sobre autonomia corsa (agora a lei n. 91-428, May 13, 1991), que usava essa designação. Ver Edmond Jouve, Relations lnternationales (Paris 1992) p. 170 ff.

13. É bastante normal que Estados confederados mantenham poderes "soberanos" mesmo em questões de relações internacionais, como no caso dos cantões suíços, segundo o Artigo 9 da constituição federal.

14. Em relação aos telhados culturais do conceito político e institucional da "cooperação transfronteiras", um caso óbvio é o dos Alpes ocidentais. É adequado citar aqui um acadêmico sem quaisquer simpatias "separatistas", que foi também membro do Parlamento Italiano para o Partido Republicano Italiano: "As há muito comuns vicissitudes que reuniram Piemonte e Saboia demonstram que a Europa real, a do povo, pode ser criada. Uma Europa para além de tratados e parlamentos, que se tornaria ponto de encontro em dignidade mútua e liberdade para todas as pequenas pátrias do Ocidente, que os Estados nacionais subjugaram com considerável violência". Ver Luigi Firpo, Genre di Piemonte (Milan 1993), p. 8.

07/02/2017

Aleksandr Dugin - Donald Trump: O Pântano e o Fogo

por Aleksandr Dugin



O Pântano se tornará o novo nome da seita globalista, os adeptos da sociedade aberta, os maníacos LGBT, o exército de Soros, os pós-humanistas, e assim por diante. Drenar o pântano não é apenas o imperativo categórico estadunidense. É um desafio global para todos nós. Cada aldeia está agora sob o poder de seu próprio pântano. Todos juntos temos de começar a luta contra o pântano russo, o pântano francês, o pântano alemão e assim por diante. Precisamos purgar nossas sociedades da influência do pântano. Então, em vez de lutar entre nós, vamos drenar juntos. Os purificadores do mundo inteiro devem estar unidos!

O outro ponto é que o antiamericanismo acabou. Não porque fosse errado, mas pelo contrário: porque o povo norte-americano iniciou a revolução precisamente contra esse aspecto dos EUA que todos nós odiamos. Agora, a elite governante europeia, assim como parte da elite russa (que ainda é liberal) não pode ser culpada (como antes) de ser muito pró-americana. Deve ser culpada de agora em diante por ser o que é: uma gangue corrompida, pervertida e gananciosa de banksters (combinação de banqueiro e gângster) e destruidores de culturas, tradições e identidades. Então vamos drenar o pântano europeu. Chega de Hollande, Merkel, Bruxelas. Europa para os europeus. Os Soros e sua seita devem ser julgados publicamente.

O pântano é agora um fenômeno extraterritorial. Exatamente como uma rede terrorista internacional. O pântano está em toda parte e em nenhuma parte. Ontem, o centro do pântano, seu núcleo, estava localizado nos EUA. Hoje não. É a oportunidade para todos nós começar a caçá-los. O pântano já não tem uma forma manifesta e regionalmente fixa. No entanto, ele existe e ainda é muito, muito poderoso. Mas seu caráter anti-nacional é agora claro, explícito. O pântano não se esconde atrás da América do Norte. Ele foi para o exílio. Onde, Canadá? Europa? Ucrânia? Outros planetas onde alguns atores dopados e atrizes prometeram emigrar no caso da vitória de Trump. Então agora é a hora de cumprir a promessa. Parece como o rapto globalista. Eles agora são absorvidos pelo não-espaço, a u-topia. Na terra da utopia liberal, na terra de ninguém. Somos testemunhas da desterritorialização do pântano, da elite globalista, do Governo Mundial.

Qual é a estrutura do pântano?

Primeiro lugar, é a ideologia, o liberalismo. Precisamos do julgamento de Nuremberg sobre o liberalismo: a última ideologia política totalitária da Modernidade. Vamos fechar esta página da história.

Segundo: O pântano é uma cultura pós-modernista especial. Baseia-se na decomposição de qualquer entidade, por digitalização, esquizomorfismo compulsório e assim por diante. Drenar significa restaurar a unidade de arte apolínea. A arte deve retornar ao holismo.

Terceiro: o capitalismo transnacional global. É o motor material do pântano. É o crédito e o FED que faz contas verdes envenenadas. Temos de acabar com tudo isto e voltar ao setor real e à abordagem mercantilista.

Sugiro redescobrir as idéias de Pitirim Sorokin. Ele via a dinâmica social da história como uma cadeia de paradigmas sociais: ideacional, idealista e sensorial. Ideacional é a dominação absoluta do espírito sobre a matéria, o ascetismo e a subjugação violenta do mundo material à aspiração espiritual e religiosa. O tipo idealista é equilibrado e baseado na coexistência harmoniosa do espírito e da matéria, onde a parte espiritual é ligeiramente dominante, mas não exclusiva (como no tipo ideacional). O tipo sensorial de sociedade é a dominação da matéria sobre o espírito, do corpo sobre a alma. O tipo sensato de sociedade é o pântano. E, recentemente, parecia que "sensato" e "América do Norte" eram sinônimos. Depois de Trump tudo é diferente. Agora o sensato é global e ex-cêntrico. Há uma espécie de "translatio Imperii" - em nenhum lugar ou em toda parte.

Mas Sorokin enfatizou que a natureza cíclica da sociedade só requer essa sucessão: ideacional-idealista-sensorial. Depois de sensorial não pode permanecer idealista. Não há evolução possível do pântano para o semi-pântano. Depois do pântano vem o Sol. O Fogo, o Espírito. O Espírito em sua forma radical e ideacional. Então, para drenar o pântano precisamos de fogo solar. O grande incêndio. Deve estar em abundância.

O pântano e o fogo são dois elementos distribuídos por toda a terra. A geopolítica agora se torna vertical. Ambos estão em qualquer ponto. O significado do lugar é agora o ímpeto do processo de drenagem do pântano. Onde? Aqui e agora.

O pântano não é mais a hegemonia americana, o presidente dos EUA rejeita tal hegemonia. Portanto, é a hegemonia da "tout court", a hegemonia como tal, com um vácuo puramente pós-modernista no centro.

Os EUA são a extremidade ocidental do mundo. É o espaço da meia-noite. E ali é alcançado o ponto final da queda. Então o momento é a mudança dos pólos. O Ocidente torna-se Oriente. Putin e Trump em dois cantos óticos do planeta. No século XX, os dois extremos eram as formas mais radicais da modernidade: capitalistas e comunistas. Dois monstros apocalípticos, Leviatã e Behemoth. Agora se tornam duas promessas escatológicas: a Grande Rússia de Putin e a América do Norte em estado de libertação por Trump. O século XXI finalmente começou.

Então tudo o que precisamos agora é o Fogo.

05/02/2017

Esteban Montenegro - Superar a Terceira Posição

por Esteban Montenegro



Os Desafios da Quarta Teoria Política na Argentina

A propósito das conferências que brindara o professor Aleksandr Dugin recentemente no CGT e na Casa da Rússia podemos dizer, sem ânimos de exagerar, que marcaram um antes e um depois para as forças da Terceira Posição na Argentina. Em efeito, puseram em evidência que em seu seio se debatem duas tendências entre os que estão abertos a se desprender dos preconceitos do século passado, e os que não. Explicaremos alguns pontos básicos da proposta de Dugin, antes de passar a verificar sua validade no terreno da política e da história local.

Em que consistem os preconceitos que acabamos de mencionar? Se nos vissemos obrigados prematuramente a ficar com um aspecto das proposições de Dugin assinalaríamos a condição de que para pensar uma nova posição política há de se abandonar tanto o anticomunismo como o antifascismo, que o liberalismo defendeu para por a se enfrentar seus oponentes e sair vitorioso. De sua parte, a Terceira Posição sustentou a teoria conspiratória que imaginou por trás do capitalismo ianque e do comunismo soviético uma mesma condução sinárquica globalista. Mas já como uma forma superior da intoxicação liberal certos setores desse campo, em especial os religiosos (mas não exclusivamente), vieram no "comunismo ateu" o inimigo principal a combater, e para isso se aliaram ao liberalismo. Do outro lado da rua, o comunismo, quando não chegou diretamente a igualá-los, imputou à Terceira Posição ser o braço armado, ou o instrumento preferido do grande capital para frear as revoluções proletárias. Também o comunismo foi aliado das forças liberais para combater às Terceiras Posições em "frentes antifascistas" como a União Democrática que enfrentou Perón em 1946, para dar um exemplo. Essas duas tendências redundaram no triunfo da unipolaridade global neoliberal até os anos 90, enquanto que as duas posições antiliberais desapareceram, ou mesmo se fundiram em alguma das opções partidocráticas liberais, mais à esquerda ou mais à direita, mas dentro de suas regras de jogo pró-mercado.

Hoje em dia qualquer liberal reconhece que o comunismo e as terceiras posições tiveram muito mais em comum entre si do que em relação à "sociedade aberta" cujo máximo exemplar seria a democracia estadounidense, e tem razão. Obviamente não faltaram honradas exceções em nenhum daqueles dois campos antiliberais que se aperceberam disso e resistiram a tomar as diferenças havidas entre um e outro como a contradição principal. O nacional-bolchevismo alemão foi um claro exemplo da Terceira Posição saindo de seus limites. Em nosso país o foram as amplas e variadas vertentes de esquerda nacional, que desde uma formação marxista e socialista abraçaram um nacionalismo identitário ibero-americanista; mas também, os nacionalistas que fizeram o caminho inverso (e que foram muitos). Aqueles podem, sem lugar para dúvida, ser tomados como sinais no caminho rumo à Quarta Teoria Política vindoura, que não há de ficar associada já nem à segunda (o comunismo), nem à terceira posição (nacionalismo), mas atuará sobre a base das verdadeiras contradições. Em termos políticos, sobre a do liberalismo atlantista unipolar anglossaxão e o resto do mundo com seus múltiplos pólos antiliberais; e em termos filosófico-existenciais, entre a metafísica do sujeito moderno com suas distintas encarnações (indivíduo, classe, nação, raça ) e o Dasein, que está na base da Quarta Teoria Política.

Vamos à história de nosso país. Em relação à Terceira Posição na Argentina, já em seus melhores momentos, entre 1945 e 1955, cavou sua própria tumba ao selar um pacto social com os grandes capitais oligárquicos em função de uma "unidade nacional" que um enfrentamento entre classes poria em cheque. Não o fez, claramente, como uma trégua necessária no caminho rumo à socialização, mas fazendo das migalhas do 50/50 para o capital e para o trabalho o próprio destino histórico. Os trabalhadores seguiram nesse marco indo "do trabalho à casa", certamente reivindicados pelos direitos trabalhistas que conquistaram junto a Perón, acreditando que essa "unidade nacional" duraria enquanto Perón a protegesse. Mas, enquanto tanto, os capitalistas, que nunca acreditaram nessa "unidade nacional" senão como um meio para voltar a impôr sua ditadura, preparavam meticulosamente um golpe de Estado, pois conservavam graças ao pacto social os recursos de seu poder intactos. Nem o capital oligárquico, nem o burguês tem pátria alguma distinta do dinheiro. Perón nunca deu o passo decisivo para derrotá-los, e deixou o povo só, enquanto ele se exilava. Disse preferir o tempo ao sangue, mas o inimigo cobrou o sangue dos trabalhadores assim mesmo. Que Perón se refugiasse na Espanha franquista no lugar de armar à classe trabalhadora e enfrentar o inimigo em 1955 representa cabalmente quem era Perón, e nisso a Terceira Posição tem razão: Perón nunca quis a "Pátria Socialista", que teria sido a consequência imediata de ter derrotado concretamente seus inimigos: os que não trabalham. Perón tão só usou fraseologia revolucionária quando, desde o exílio, necessitou alentar suas "formações especiais", quer dizer, as guerrilhas da esquerda peronista. Um exemplo claro é o excelente documento de "Atualização Política e Doutrinária para a Tomada do Poder", onde cita Mao quase como uma autoridade e reconhece o justicialismo como uma forma de socialismo nacional. Se trataria de um importantíssimo documento como antecedente da proposta de uma Quarta Teoria Política se não fosse por contradizê-lo grosseiramente anos depois após retornar ao poder. O pragmatismo e a autorreferencialidade de Perón permitiram forçar, a partir do exílio, uma negociação que conduza a novas eleições. Já uma vez alcançado o poder pela terceira vez, dentro da legalidade do sistema, procedeu a cometer os mesmos erros que em seus dois primeiros mandatos, e, ademais, procedeu a relegar, e desarticular a partir do aparato repressivo do Estado burguês as organizações armadas que tornaram seu retorno possível. Que tipo de socialismo e que tipo de planejamento estratégico de guerra integral é possível deixando o inimigo se reorganizar, conservar seu poder de fogo, seu poder econômico e finalmente deixando o povo sem condução, nem um organismo político-militar que o proteja?

Com isso não se pretende aqui menosprezar as conquistas que Perón instrumentou em favor dos trabalhadores. Nem sua visão de futuro e sua indubitável capacidade política e intelectual. Neste sentido, seguimos aprendendo dele e seus acertos, como se aprende de todos os grandes estadistas da história. Mas pela responsabilidade que assumiu perante o povo, seus erros são os que mais nos custaram coletivamente falando, e é ingênuo acreditar que a Terceira Posição só fracassou pela violência de seus inimigos, e de volta, por uma conspiração nas sombras entre marxistas e liberais. Se a Terceira Posição tivesse estado à altura do combate que propôs ao inimigo liberal, teria deixado de ser tal. E isso teria sido o lógico na Argentina, onde o comunismo nunca foi uma ameaça, seriamente falando, para ela e sim o foi o liberalismo. A armadilha do liberal sempre foi fazer com que a Terceira Posição acreditasse que erradicar as formas capitalistas de raiz equivalia a "tornar-se comunista". Tanto teve efeito essa armadilha que na Argentina os ressabios da claudicante Terceira Posição estão empesteados de eminentes representantes do que, na Europa, foi chamado de "estratégia da tensão". A AAA (Aliança Anticomunista Argentina) foi o equivalente local à Rede Gladio. Servindo ao aparato de Estado, e a serviços de inteligência, homens da Terceira Posição operaram assassinando e torturando militantes de esquerda durante os anos 70. Sob o sangue desses crimes, a Terceira Posição realmente existente, já livre de "infiltrados" e de verdadeiros inimigos à esquerda, ficou desde então atada simbolicamente àquele pacto espúrio com as forças do liberalismo. Como é de se esperar, os que hoje se afirmam orgulhosos na Terceira Posição nostálgica levantam e fazem seu o relato histórico dos vencedores da "guerra antissubversiva", quer dizer, dos liberais pró-ianques. Este imaginário anticomunista é o vigente, com matizes, em quase a maior parte do sindicalismo, no peronismo ortodoxo, no nacionalismo católico, e entre os nacionalista de aberto ou velado corte fascista.

Mas nem o deixar de ser anticomunista implica tornar-se comunista, nem o deixar de ser "antifascista" tornar-se um peronista ou nacionalista de Terceira Posição. Se afirma-se essa tese cai-se na chantagem liberal, pois a ninguém mais beneficia hoje que não se possa pensar mais além dessas categorias. Seja como for, para qualquer antiliberal consequente sempre é objetivamente pior ser um covarde e ceder diante das forças repressivas de ocupação liberal que ser tachado de subversivo, totalitário ou o que seja. Por que nos é possível afirmar isto? Porque nos parece um absurdo sustentar que o decisivo política e éticamente falando ocorra ao nível da representação. Isso quer dizer, considerar, que aquilo que sustenta o valor de uma pessoa é se ele está adscrito à ideologia correta ou não. E aqui entramos no terreno da contradição filosófico-existencial que divide águas entre a Quarta Teoria Política e a modernidade. Vale repetí-lo: aquilo que opera como representação teórica de um sujeito político dado, comumento designado "ideologia", ou "doutrina", está subordinado para nós ao domínio existencial, que é aquele onde se joga o realmente decisivo no campo político. Sustentar o contrário implicaria abraçar um racionalismo improcedente que nos situa no terreno caduco das três teorias políticas modernas que se busca deixar para trás.

A experiência fática é o primeiro momento no desenvolvimento de toda autoconsciência. Por isso, para nós, aqueles que decidiram lutar e morrer contra o inimigo do povo e da pátria estão existencial, ética e politicamente, por cima do resto seja qual fosse sua ideologia. Nós sim coincidimos com a Quarta Teoria Política (diferentemente da Terceira Posição local que é humanista-cristã) no fato de que seu portador seja o Dasein. Nem um sujeito individual, nem um coletivo podem ser portavozes de algo radical. O Dasein ,propriamente dito, é aquele existente autêntico em cujos atos e gestos se pode ressignificar a trama existencial do mundo circundante onde nossa terra, os outros homens, e nós mesmos habitamos. A Verdade é uma experiência que transcende por ser anterior e fundante a toda racionalização discursiva. Por isso não terá sentido que nossa crítica à Terceira Posição seja tachada de "comunista". Neste sentido, vale recordar como bem marca Jünger, homem de ação que nunca teve os medos de nossos nacionalistas, que superar o economicismo de certo marxismo não implica "que o espírito se aparte de todas as lutas econômicas: o importante é, ao contrário, que se outorgue a essas lutas a máxima virulência" (O Trabalhador, Tusquets, 1990, p.35) Dirão nossos esperados detratores que Jünger também era um "infiltrado" dentro da Terceira Posição? Nós lhes responderemos de antemão. Não, era alguém que via mais além, sendo por isso um precursor da Quarta.

O que fazer então? Outra vez o anticomunismo conspiranoico abortará as possibilidades mais ousadas, as únicas viáveis, da revolução nacional e social? Ainda que os que se dizem de Terceira Posição geralmente ocultem ou ignorem, na Argentina houve nacionalistas e peronistas de formação nas vertentes mais duras da Terceira Posição que se animaram e enfileiraram junto às tradições nacionais nas quais se formaram a revolução social sem contemplações pela oligarquia e pelos patrões. Sem nada de "pacto social", nem "luta pelo Ocidente cristão", nem pondo-se à disposição da OTAN. Seguirá negando-se o valor existencial daqueles precursores? Jose Luis Nell, Joe Baxter, Rodolfo Walsh, Dardo Cabo, eles marcaram o caminho para a Terceira Posição dando a vida por um nacionalismo revolucionário cuja Ideia esteve por cima do Estado e da conciliação com o capital. Nenhum deles lutou a partir da cômoda poltrona de uma representação sindical, negociando com autoridades ilegítimas de um Estado burguês e ditatorial. O caminho rumo a uma Quarta Teoria Política será possível tão somente revalorizando o que ali pulsava na prática. Ali havia algo mais que mero nacionalismo, algo mais que mero marxismo; ainda que defeituosamente formulado, e por isso instável em termos teóricos. Eles foram socialistas, nacionalistas, guerreiros do continente americano, abandeirados da solidariedade internacional na luta contra o atlantismo e deram sua vida. Que importa que não houvessem tido uma concepção ideológica acabada se fizeram mais pela Pátria que todos os nacionalistas vivos juntos? O importante é isso, que na Argentina houve guerreiros que lutaram por uma Pátria Socialista respeitando profundamente as raízes históricas e as tradições do povo. Perón poderá ser o máximo dentro da Terceira Posição. Não temos dúvida, mas também é seu limite. De fato, o maior filósofo que teve o peronismo, um eminente heideggeriano, me refiro a Carlos Astrada, é geralmente ignorado pela Terceira Posição de nossos dias, quiçá como castigo por não ser católico, ou por ter logo girado à esquerda (como os homens que acabamos de reivindicar) realizando, então, mordazes críticas a Perón. São estes homens heterodoxos os anúncios das possibilidades mais autênticas de nosso destino: o caminho rumo a outro horizonte político que pouco tem a ver com este fantasma do "comunismo assassino" que veem os nacionalistas argentinos quando se tenta retirá-los de sua estreiteza menal. Os únicos genocídios na Argentina foram sempre cometidos por nacional-conservadores e liberais.

No dizer de Heidegger, o Dasein elege seus próprios herois em função da projeção de sua existência no horizonte da finitude. É hora de superar a Terceira Posição, e dar-se conta de que a efetiva libertação nacional e social só é possível com um anticapitalismo enraizado e furioso que não tenha como destino o Estado, nem a convivência com o inimigo, nem a adoração de tempos remotos e arcanos, mas parir uma nova civilização em chave continental e a um novo homem desde uma práxis e uma teoria ajustadas aos tempos correntes. Sem socialismo, sem trabalhadores em armas, não há liberação nacional; e sem continentalismo e multipolaridade, tampouco. Para nos encontrarmos de novo com nosso destino, temos que dar mais ouvidos a Heidegger, a Jünger, a Schmitt, como alguns fazemos há anos e como bem nos sugere Dugin. No lugar dos intelectuais conservadores-católicos que a direita peronista esgrime como autoridade (Nimio de Anquín, Disandro, etc.), nós propomos nos aproximarmos mediante um diálogo interpretativo, de igual para igual, dogmas e ideologia à parte, a Carlos Astrada, Martínez Estrada e Leopoldo Lugones; a Scalabrini Ortíz, Jauretche e Hernández Arregui; aos mestres alemães antes nomeados e aos sempre vigentes filósofos gregos. Em suma, nossa cultura é a que merece leitura atenta, não para se estancar em algumas de suas maiores figuras, mas para nos reencontrarmos nós mesmos com nosso destino histórico.

Que o Dasein e não o humanismo cristão opere na Quarta Teoria Política não é um condimento que o diferencia da Terceira Posição peronista. É algo essencial, tal como o anticapitalismo socializante que o sustenta (e aqui tentamos tematizar sucintamente que sua necessidade não parte de uma análise economicista, mas de uma existencial). Estas diferenças abrem um abismo que nos interpela. Estamos dispostos a mudar a trama de significações na qual nos estabelecemos alguma vez? Somos todavia suficientemente humildes e, ao mesmo tempo, valentes, como para deixar um espaço livre de certezas para que possa surgir algo novo? Hegel, e depois Nietzsche, sacudiram o mundo ocidental ao anunciar a morte de Deus. Assim alertaram e sacudiram suas consciências sobre o que estava por vir. Na Argentina faz tempo que certos homens buscam um Perón para que os redima...mas Perón morreu e era o único que o peronismo por definição tinha como garantia de mesmidade. Não buscam nenhuma mudança aqueles que amontoados ao redor de seu cadáver repetem como mantra frases feitas para exorcizar qualquer "desvio", posto que a rigidez própria do morto não poderá nunca dar luz a uma nova civilização. Todo ressabio institucional, partidário ou sindical, do peronismo, está ultrapassado e vinculado indissoluvelmente ao liberalismo com o qual ele sempre se dispôs a negociar os termos de reprodução do aparato estatal e da economia de mercado. Tudo de valioso e heroico que guardou dentro de si a Terceira Posição não vive nessas estruturas, mas fora delas, e se conserva superado na luta pelo futuro de nossa terra e não na adoração nostálgica de algo que não voltará a ser e que justamente por isso demanda nossa intervenção na história. 

Rússia e Argentina, tal como afirmou felizmente Dugin, ainda são depositárias no mais profundo de si, das instituições romanas, das artes e da filosofia grega, dos mestres do pensamento alemão, dessa Europa que em seu solo natal já deixou de ser tal. A cultura vive agora em nós, não como algo externo, mas como possibilidade, pois todavia estamos próximos à terra e habitamos um grande espaço continental que espera sua configuração e uma unidade mais férrea para dar tudo de si. Nosso caráter de possibilidade atuante nos permite ser portadores de algo novo. Somos o futuro do melhor dos passados. Estamos aqui para, a partir de uma ruptura com o imediato ressignificar a trama de nosso mundo e não para maquiar mortos. A Tradição, para nós mais que ninguém, é uma possibilidade viva de nosso destino. E nada que se levante por cima e por fora nosso poderá nos convencer do contrário. Até aí vamos, pois "o mundo é algo em que o existente enquanto ente já sempre esteve, e no qual todo explícito ir até ele não faz mais que voltar" (Heidegger, Sein und Zeit, 1927, p. 76), ...neste caminho de retorno ao Heimat nos encontramos felizmente com a Quarta Teoria Política. A Argentina tem aportes muito importantes que fazer a respeito. Somos vários os que podemos exibir as credenciais de abertura, compromisso e consistência intelectual que demandam a hora, ainda que por isso tenhamos ganho o desprezo dos que ainda defendem posições perdidas. Saudamos a visita de Dugin e a criação do movimento eurasiático na Argentina por velhos amigos nossos como se sauda o perigoso e tudo o que dá sentido à vida.

Os negócios são coisa de outros, o futuro é nosso.