14/01/2012

"Serviço ao Estado" e Burocracia

por Julius Evola



Um sinal característico da decadência da idéia de Estado no mundo moderno está representado pela perda do significado daquilo que, em uma acepção superior, significa o serviço ao Estado.

Ali onde o Estado se apresenta como a encarnação de um poder, no mesmo tem uma função essencial aquelas classes políticas definidas por um ideal de lealismo, classes que, na ação de servir ao Estado, sentem uma elevadíssima honra e que, sobre tal base, elas participam da autoridade, da dignidade e do prestígio inerentes à idéia central, de modo tal de diferenciar-se da massa dos simples cidadãos "privados". Nos Estados tradicionais tais classes foram acima de tudo a nobreza, o exército, a diplomacia e, finalmente, aquilo que hoje se denomina a burocracia. É sobre esta última que nós queremos dirigir uma breve consideração.

Tal como foi definida no mundo democrático moderno do último século, a burocracia não é mais que uma caricatura, uma imagem materializada, opacada e defasada daquilo ao qual deveria corresponder sua idéia. Ainda prescindindo do presente imediato, no qual a figura do "estatal" se converteu na imagem esquálida de um ser em luta permanente com o problema econômico, de modo tal de ser já o objeto preferido de uma espécie de ludibrio e de amarga ironia, ainda prescindindo disso, o sistema apresenta caracteres inverossímeis. Nos atuais Estados democráticos se trata de burocracias privadas de qualquer autoridade e de qualquer prestígio, privadas de uma tradição no melhor sentido da palavra, com pessoal em excesso, medíocre, mal retribuído, caracterizado por práticas lentas, apáticas, pedantes e enfastiantes. O horror pela responsabilidade direta e o servilismo pelo "superior" são aqui outros traços característicos; no alto, outro traços que se encontra é um vazio escritorismo. Em geral, o funcionário estatal médio de hoje em dia se diferencia muito pouco do tipo genérico moderno do "vendedor de trabalho"; efetivamente, nos últimos tempos os "estatais" assumiram justamente a figura de uma "categoria de trabalhadores" que vai atrás das outras no que se refere às reivindicações sociais e salariais com agirações e até greves, coisas estas absolutamente inconcebíveis em um Estado verdadeiro e tradicional, tão inconcebíveis como o caso de um exército que se pusesse a fazer greve em uma determinada circunstância para impôr ao Estado, compreendido como um "empregador" sui generis, suas exigências.

Na prática, hoje se chega a ser empregado do Estado quando se carece de iniciativa e não se tem nenhuma perspectiva melhor na vida, tendo em vista um soldo modesto, porém seguro e contínuo: portanto algo próprio de um espírito mais que pequeno-burguês e utilitário.



E se na baixa burocracia a distinção entre quem serve ao Estado e um trabalhador ou empregado privado qualquer é a tal respeito quase inexistente, nas altas esferas o burocrata se confunde com o tipo do politiqueiro. Temos assim "honoráveis" e "pessoas influentes" investidas do poder de governo, porém na maioria das vezes sem o correlato de uma verdadeira e específica competência, as quais nos arranjos ministeriais tomam-se ou mudam-se as pastas de um ou outro ministério, apurando-se em chamar ao seu redor os amigos ou companheiros de partido, tendo menos em vista o fato de servir o Estado ou ao Chefe do Estado quanto o de tirar proveito da situação.

Este é o lamentável espetáculo que hoje nos apresenta tudo o que é burocracia. Podem influenciar aqui razões técnicas, o desmedido crescimento das estruturas e superestruturas administrativas e dos "poderes públicos": porém o ponto fundamental é uma queda de nível, a perda de uma tradição, a extinção de uma sensibilidade, todos estes fenômenos paralelos ao do ocaso do princípio de uma verdadeira autoridade e soberania.

Nos vem à mente o caso de um funcionário, que pertencia a uma família da nobreza, o qual apresentou sua demissão quando caiu a monarquia de seu país. Perguntou-se-lhe então: "Como é que vossa senhoria, possuidor de riquezas incalculáveis, podia ser um funcionário assalariado, sem ter nenhuma necessidade disso?". O estupor de quem se sentiu fazer semelhante pergunta não foi menor do que daquele daquele a quem ela havia sido feita: posto que ele não podia conceber uma honra maior que a de servir ao Estado e a seu soberano. E, desde a perspectiva prática, não se tratava aqui de uma "utilidade", senão da aquisição de um prestígio, de um "nível", de uma honra. Porém hoje em dia, quem não se assombraria se o filho de um grande capitalista ambicionasse converter-se em um..."estatal"?

Nos Estados tradicionais o espírito antiburocrático, militar, do serviço ao Estado teve seu simbolo no uniforme o qual, assim como os soldados, endossavam também os funcionários (note-se como no fascismo existiu um desejo de retomar tal idéia). E em contraposição com o estilo do alto funcionário de hoje em dia que faz servir seu posto a suas utilidades individuais, existia neles o desinteresse de uma impessoalidade ativa. Na língua francesa a expressão: "On ne le fait pas pour le Roi de Prussie" quer dizer aproximadamente: se faz ainda quando não nos vem uma moeda no bolso. É uma referência àquilo que, pelo contrário, foi o estilo de puro e desinteressado lealismo que constituiu o estilo da Prússia de Frederico II. Porém também no primeiro auto-governo inglês as funções mais altas eram honoríficas e confiadas a quem gozasse de uma independência econômica, justamente para garantir a pureza e impessoalidade da função e simultaneamente o correspondente prestígio. 

Tal como se mencionou, a burocracia em sentido negativo formou-se paralelamente com a democracia, enquanto que os Estados da Europa Central, por terem sido os últimos a conservar os traços tradicionais, conservam também muito do estilo do puro e antiburocrático "serviço ao Estado". Mudar as coisas, em especial na Itália, é hoje uma tarefa desesperada. Existem gravíssimas dificuldades técnicas, assim como financeiras. Porém a maior dificuldade se encontra naquilo que deriva da queda de nível do espírito burguês, do espírito materialista e vantagista, da carência de uma idéia de verdadeira autoridade e soberania.