04/05/2012

O Caos Social


Por René Guénon

Não pretendo neste estudo prender-me especialmente ao ponto de vista social, que só nos interessa muito indiretamente, porque representa apenas uma aplicação bastante longínqua dos princípios fundamentais e, por conseqüência, não é nesse domínio que poderia começar uma recuperação do Mundo Moderno. Efetivamente, se essa recuperação fosse feita assim, começada ao contrário, quer dizer, partindo das conseqüências em vez de partir dos princípios, faltar-lhe-ia forçosamente uma base séria e ela seria ilusória. Nada de estável poderia jamais resultar daí e tudo teria de recomeçar incessantemente, porque as pessoas teriam esquecido o entendimento inicial acerca das verdades essenciais. É por esse motivo que só nos é possível atribuir às contingências políticas, mesmo dando a esta palavra o seu sentido mais lato, o valor de simples sinais exteriores da mentalidade de uma época; mas mesmo sob esse aspecto não podemos deixar passar inteiramente em silêncio as manifestações da desordem moderna no domínio social propriamente dito.

Como foi dito há pouco, já ninguém se encontra, no presente estado do Mundo ocidental, no lugar que lhe convém normalmente em virtude da sua própria natureza. É isso que exprimimos ao dizer que as castas já não existem, porque a casta, entendida no seu verdadeiro sentido tradicional, é simplesmente a própria natureza individual, com todo o conjunto das aptidões especiais que ela comporta e que predispõem cada homem ao cumprimento desta ou daquela função determinada. Como o acesso a certas funções já não se encontra submetido a qualquer regra legítima, daí resulta, inevitavelmente, que cada um será levado a fazer seja o que for e, muitas vezes, precisamente aquilo para o que se encontra menos qualificado. O papel que desempenhará na sociedade será determinado não pelo acaso, que na realidade não existe [1], mas pelo que pode dar a ilusão do acaso, ou seja, pela confusão de todas as espécies de circunstâncias acidentais. O que intervirá menos aí será precisamente o único fator que deveria contar em semelhante caso, isto é, as diferenças de natureza que existem entre os homens. A causa de toda esta desordem é a negação dessas mesmas diferenças, arrastando consigo a de toda a hierarquia social. Tal negação foi, a princípio, talvez pouco consciente e mais prática que teórica, porque a confusão das castas precedeu a sua supressão completa ou, por outras palavras, desprezou-se a natureza dos indivíduos antes de se chegar a ponto de não fazer qualquer caso dela. Mais tarde, no entanto, ela foi erigida pelos modernos em pseudo-princípio sob nome de “igualdade”.

Seria muito fácil mostrar que a igualdade não pode existir em lugar nenhum, pela simples razão de que não poderia haver dois seres que fossem ao mesmo tempo realmente distintos e inteiramente semelhantes entre si sob todos os aspectos. Seria fácil também salientar todas as conseqüências absurdas que decorrem dessa idéia quimérica, em nome da qual se pretende impor por toda parte uma completa uniformidade, por exemplo distribuindo a todos ensino idêntico, como se todos fossem igualmente aptos a compreender as mesmas coisas e como se para as fazer compreender os mesmos métodos conviessem a todos indistintamente. Pode-se, aliás, perguntar se não se trata mais de “aprender” do que de “compreender” realmente, ou seja, se a memória não é substituta da inteligência na concepção inteiramente verbal e “livresca” do ensino atual, em que se visa apenas a acumulação de noções rudimentares e heteróclitas, e em que a qualidade é inteiramente sacrificada à quantidade, tal como se produz por toda a parte, no Mundo Moderno, por razões que explicarei mais completamente a seguir: é sempre a dispersão na multiplicidade.

Haveria, a este respeito, muitas coisas a dizer acerca dos malefícios do “ensino obrigatório”; mas este não é o lugar para insistir nesse aspecto, e, para não sair do quadro traçado, contento-me em assinalar de passagem essa conseqüência especial das teorias “igualitárias”, como um dos numerosos elementos de desordem atuais.

Naturalmente, quando nos encontramos em presença de uma idéia como a de “igualdade” ou como a de “progresso”, ou como os outros “dogmas laicos” que quase todos os nossos contemporâneos aceitam cegamente, e a maior parte dos quais começou a se formular claramente no decorrer do século 18, não nos é possível admitir que tais idéias tenham nascido espontaneamente. Trata-se de verdadeiras “sugestões” no sentido mais estrito desta palavra, que, aliás, não podiam produzir o seu efeito senão num meio já preparado para recebê-las; elas não criaram inteiramente o estado de espírito que caracteriza a época moderna, mas contribuíram largamente para o criar e desenvolver até um ponto que sem dúvida não teria alcançado sem elas. Se estas sugestões desaparecessem, a mentalidade geral estaria muito perto de mudar de orientação; é por isso que elas são tão cuidadosamente sustentadas por todos aqueles que têm qualquer interesse em manter a desordem, senão em agravá-la ainda mais, e é também a razão pela qual, numa época em que se pretende submeter tudo à discussão, elas são as únicas coisas que nunca é permitido discutir. É, aliás, difícil determinar exatamente o grau de sinceridade daqueles que se fazem propagadores de semelhantes idéias, saber em que medida certos homens chegam a agarrar-se às suas próprias mentiras e a sugestionar-se a si próprios sugestionando os outros; e mesmo numa propaganda deste tipo aqueles que desempenham um papel de enganados são muitas vezes os melhores instrumentos, porque lhe dão uma convicção que os outros teriam alguma dificuldade em simular e que é facilmente contagiosa. Mas por detrás de tudo isso, e pelo menos na origem, é necessária uma ação muito mais consciente, uma direção que só pode provir de homens que sabem perfeitamente a que se referem as idéias que eles assim põem a circular.

Falo de “idéias”, mas tal palavra só impropriamente pode ser aplicada neste caso, porque é bem evidente que não se trata de modo algum de idéias puras, nem mesmo de algo que pertença de perto ou de longe à ordem intelectual. Pode-se dizer que são idéias falsas, mas mais valeria ainda chamar-lhes “pseudo-idéias” destinadas principalmente a provocar reações sentimentais, o que é efetivamente o meio mais eficaz e mais fácil para agir sobre as massas.

Neste aspecto, a palavra tem, aliás, uma importância maior do que a noção que supostamente representa e, na sua maior parte, os “ídolos” modernos não passam de palavras, porque se produz neste caso esse singular fenômeno conhecido pelo nome de “verbalismo”, em que a sonoridade das palavras basta para dar a ilusão do pensamento. A influência que os oradores exercem sobre as multidões é particularmente característica sob este aspecto, e não há necessidade de estudá-la de muito perto para se dar conta que se trata de um processo de sugestão comparável ao dos hipnotizadores.

Mas, sem estender mais estas considerações, voltemos às conseqüências que traz consigo a negação de toda verdadeira hierarquia e notemos que, no estado atual das coisas, não apenas um homem só cumpre a sua função própria em casos excepcionais e como por acidente – enquanto é o contrário que deveria normalmente ser a exceção –, mas ainda acontece que o mesmo homem seja chamado a exercer sucessivamente funções todas elas diferentes, como se ele pudesse mudar de aptidões à sua vontade. Isso pode parecer paradoxal numa época de "especialização” levada ao extremo, e, no entanto, é o que ocorre, sobretudo na ordem política. Se a competência dos “especialistas” é muitas vezes ilusória e, em todo o caso, limitada a um domínio muito estreito, a crença nessa competência é, todavia, um fato e podemos perguntar como é possível que essa crença não desempenhe qualquer papel quando se trata da carreira dos homens políticos, em que a incompetência mais completa raramente é obstáculo. No entanto, se refletimos nesse fato percebemos facilmente que não há nisso nada de que nos devamos espantar, pois trata-se, em suma, apenas do resultado muito natural da concepção “democrática”, em virtude da qual o poder vem de baixo e apóia-se essencialmente sobre a maioria, o que tem necessariamente por corolário a exclusão de toda verdadeira competência, porque a competência é sempre uma superioridade pelo menos relativa e só pode ser o apanágio de uma minoria.

Neste ponto serão úteis algumas explicações para fazer sobressair, por um lado, os sofismas que se escondem sob a idéia “democrática” e, por outro lado, os laços que ligam essa mesma idéia a todo o conjunto da mentalidade moderna. Dado o ponto de vista em que me coloco, é quase supérfluo fazer notar que essas observações serão formuladas fora de todas as questões de partidos e de todas as querelas políticas, às quais não pretendo me misturar nem de perto nem de longe.

Encaro essas coisas de modo absolutamente desinteressado, como o poderia fazer em relação a qualquer outro objeto de estudo, e procurando somente dar-me conta, tão nitidamente quanto possível, de tudo o que está no fundo disto, o que é a condição necessária e suficiente para que se dissipem todas as ilusões que os nossos contemporâneos criam a este respeito. Também aí se trata verdadeiramente de uma “sugestão”, como afirmei há pouco em relação a idéias um pouco diferentes, mas pelo menos conexas; e desde que se saiba que se trata apenas de uma sugestão, desde que se compreenda como atua, então ela já não se pode exercer. Contra coisas deste gênero, um exame um tanto aprofundado e puramente “objetivo”, como se diz hoje na linguagem especial emprestada dos filósofos alemães, é bem mais eficaz do que todas as declamações sentimentais e todas as polêmicas de partido, que nada provam e nada mais são do que a expressão de simples preferências individuais.

O argumento mais decisivo contra a “democracia” resume-se em poucas palavras: o superior não pode emanar do inferior, porque o “mais” não pode sair do “menos”; isto é de um rigor matemático absoluto, contra o qual nada poderia prevalecer. Importa notar que é precisamente o mesmo argumento que, aplicado numa outra ordem, vale também contra o “materialismo”; nada há de fortuito nesta concordância e as duas coisas são muito mais estreitamente solidárias do que poderia parecer à primeira vista. É demasiado evidente que o povo não pode conferir um poder que ele próprio não possui; o verdadeiro poder só pode vir do alto, e é por isso, diga-se de passagem, que só pode ser legitimado pela sanção de alguma coisa superior à ordem social, ou seja, uma autoridade espiritual. Se for de outra maneira, será apenas uma contrafação de poder, um estado de fato que é injustificável por defeito de princípio, e em que não pode haver senão desordem e confusão.

Esta inversão de toda hierarquia começa no momento em que o poder temporal se quer tornar independente da autoridade espiritual e, a seguir, subordiná-la, pretendendo que sirva fins políticos. Há uma primeira usurpação que abre caminho a todas as outras, e pode-se mostrar que, por exemplo, a realeza francesa, desde o século 14, trabalhou inconscientemente ela mesma na preparação da Revolução que a devia derrubar. Talvez eu tenha algum dia ocasião de desenvolver como merecido este ponto de vista, que, de momento, só posso indicar de modo secundário.

Se se define a “democracia” como o governo do povo por si mesmo, trata-se de uma verdadeira impossibilidade, uma coisa que nem mesmo pode ter simples existência de fato, e não mais na nossa época do que em qualquer outra. Não devemos nos deixar enganar pelas palavras, e é contraditório admitir que os mesmos homens possam ser simultaneamente governantes e governados, visto que, para utilizar a linguagem aristotélica, um mesmo ser não pode ser “em ato” e “em potência” ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto. Há uma relação que supõe necessariamente dois termos em presença; não poderia haver governados se não houvesse também governantes, ainda que ilegítimos e sem outro direito ao poder que aquele que atribuíram a si mesmos; mas a grande habilidade dos dirigentes, no Mundo Moderno, é a de fazer crer ao povo que ele se governa a si próprio. E o povo deixa-se persuadir de boa vontade, tanto mais porque se sente lisonjeado com isso e é incapaz de refletir bastante para ver o que há aí de impossível.

Foi para criar essa ilusão que se inventou o “sufrágio universal”: é a opinião da maioria que supostamente faz a lei, mas falta perceber que a opinião é algo que se pode facilmente dirigir e modificar. Pode-se sempre, com o auxílio de sugestões apropriadas, provocar nela correntes dirigidas neste ou naquele sentido determinado; já não me lembro quem falou em “fabricar a opinião” e esta expressão é completamente justa, embora se deva dizer que não são sempre os dirigentes visíveis que têm realmente à sua disposição os meios necessários para obter esse resultado.

Esta última observação dá-nos certamente a razão pela qual a incompetência dos políticos mais destacados parece ter apenas uma importância muito relativa; mas como não se trata aqui de desmontar as engrenagens do que se poderia chamar de “máquina governativa”. Limito-me a assinalar que essa mesma incompetência oferece a vantagem de manter a ilusão que acabo de mencionar: é somente nessas condições, efetivamente, que os políticos em questão podem aparecer como a emanação da maioria, sendo assim feitos à sua imagem, porque a maioria, seja qual for o assunto acerca do qual for chamada a dar a sua opinião, é sempre constituída pelos incompetentes, cujo número é incomparavelmente maior do que o dos homens que são capazes de se pronunciar com perfeito conhecimento de causa.

Isto leva-nos imediatamente a perceber em que é que está essencialmente errada a idéia segundo a qual a maioria deve fazer a lei – porque, mesmo se essa idéia, pela força das coisas, é sobretudo teórica e não pode corresponder a uma realidade efetiva, resta, no entanto, explicar como é que ela pôde se implantar no espírito moderno, quais são as tendências deste às quais ela corresponde e que ela satisfaz, pelo menos aparentemente. Pois bem, seu defeito mais visível é exatamente aquele indicado há instantes: a opinião da maioria só pode ser a expressão da incompetência, quer esta resulte da falta de inteligência, ou da ignorância pura e simples. Pode-se fazer intervir, a este respeito, certas observações de “psicologia coletiva” e lembrar notadamente o fato bastante conhecido de que, numa multidão, o conjunto das reações mentais que se produzem entre os indivíduos que a compõem leva à formação de uma espécie de resultante que não está nem sequer no nível da média, mas no nível dos elementos mais inferiores.

Haveria aqui lugar para fazer notar, por outro lado, como certos filósofos modernos quiseram transportar para a ordem intelectual a teoria “democrática” que faz prevalecer a opinião da maioria, fazendo do que chamam de “consenso universal” um pretenso “critério da verdade”.  Mesmo supondo que haja efetivamente uma questão acerca da qual todos os homens estejam de acordo, esse acordo não provaria nada em si mesmo; mas, além disso, se essa unanimidade existisse realmente, o que é tanto mais duvidoso quanto há sempre muitos homens que não têm nenhuma opinião sobre qualquer questão e que nunca a definiram, seria em todo caso impossível verificá-la de fato, pelo que, o que se invoca a favor de uma opinião e como sinal da sua verdade reduz-se a ser apenas o consentimento do maior número, e ainda restringindo-se a um meio forçosamente muito limitado no espaço e no tempo. Neste domínio aparece ainda mais claramente que a teoria carece de bases, porque é mais fácil subtrair-se à influência do sentimento que, pelo contrário, entra em jogo quase inevitavelmente quanto se trata do domínio político, e essa influência é um dos principais obstáculos à compreensão de certas coisas, mesmo entre aqueles que teriam capacidade intelectual largamente suficiente para alcançar sem dificuldade essa compreensão. Os impulsos emotivos impedem a reflexão, e uma das mais vulgares habilidades da política é a que consiste em tirar partido dessa incompatibilidade.

Mas vamos mais ao fundo da questão: o que é exatamente essa lei do maior número que invocam os governos modernos e da qual pretendem extrair a sua única justificação? É simplesmente a lei da matéria e da força bruta, a lei em virtude da qual uma massa, arrastada pelo seu peso, esmaga tudo o que se encontra no seu caminho; é aí que se encontra precisamente o ponto de junção entre a concepção “democrática” e o “materialismo” e é também o que faz que essa mesma concepção esteja tão estreitamente ligada à mentalidade atual. É a inversão completa da ordem normal, visto que é a proclamação da supremacia da multiplicidade como tal, supremacia que, de fato, só existe no mundo material [2]. Pelo contrário, no mundo espiritual e mais simplesmente ainda na ordem universal, é a unidade que está no cimo da hierarquia, porque é ela o princípio de onde parte toda a multiplicidade [3]; mas quando o princípio é negado ou perdido de vista, só resta a multiplicidade pura, que se identifica com a própria matéria. Por outro lado, a alusão que acabo de fazer à gravidade dos corpos implica mais do que uma simples comparação, porque a gravidade representa efetivamente, no domínio das forças físicas, no sentido mais vulgar desta palavra, a tendência descendente e compressiva, que traz para o ser uma limitação cada vez mais estreita e que vai ao mesmo tempo no sentido da multiplicidade, representada aqui por uma densidade cada vez maior [4]. Essa atividade humana se desenvolveu desde o começo da época moderna. Além disso, é caso para notar que a matéria, pelo seu poder de divisão e de limitação, simultaneamente, é o que a doutrina escolástica chama de “princípio de individuação”, e isso liga as considerações que expus agora ao que foi dito anteriormente a respeito do individualismo: essa tendência referida por último é também, poder-se-ia dizer, a tendência “individualizante”, aquela segundo a qual se efetua o que a tradição judaico-cristã designa como a “queda” dos seres que se separam da unidade [5].

A multiplicidade vista fora do seu princípio, e que desse modo não pode mais ser remetida à unidade, é, na ordem social, a coletividade concebida como sendo simplesmente a soma aritmética dos indivíduos que a compõem, e que com efeito é apenas isso mesmo, quando não se encontra ligada a qualquer princípio superior aos indivíduos. E a lei da coletividade, sob este aspecto, é bem essa lei do maior número sobre a qual se funda a idéia “democrática”.

Nesta altura devemos parar um instante para dissipar uma confusão possível: falando do individualismo moderno, consideramos quase exclusivamente as suas manifestações na ordem intelectual; poder-se-ia crer que, no que respeita à ordem social, o caso é diferente. Com efeito, se tomamos esta palavra “individualismo” na sua acepção mais estreita, poderíamos ser tentados a opor a coletividade ao indivíduo e a pensar que fatos tais como o do papel cada vez mais invasor do Estado e o da complexidade crescente das instituições sociais são a marca de uma tendência contrária ao individualismo. Na realidade não é assim, porque a coletividade, não sendo outra coisa senão a soma dos indivíduos, não pode ser oposta a estes, aliás como o próprio Estado concebido à maneira moderna, ou seja, como simples representação da massa, onde não se reflete qualquer princípio superior. Ora, é precisamente na negação de todo princípio supra-individual que consiste verdadeiramente o individualismo tal como o definimos. Portanto, se há no domínio social conflitos entre diversas tendências todas elas pertencentes igualmente ao espírito moderno, esses conflitos não existem entre o individualismo e outra coisa, mas simplesmente entre as múltiplas variedades de que o próprio individualismo é suscetível; e é fácil dar-se conta de que, na falta de um princípio capaz de unificar realmente a multiplicidade, tais conflitos devem ser mais numerosos e mais graves na nossa época do que jamais o foram, porque quem diz individualismo diz necessariamente divisão. E essa divisão, com o estado caótico que origina, é a conseqüência fatal de uma civilização totalmente material, visto que é a própria matéria que é a raiz da divisão e da multiplicidade.

Dito isto, devo ainda insistir numa conseqüência imediata da idéia "democrática", que é a negação da elite entendida na sua única acepção legítima; não é propriamente “por acaso” que “democracia” se opõe a “aristocracia”, esta última palavra designando precisamente, pelo menos quando é tomada no seu sentido etimológico, o poder da elite. A elite, de qualquer modo, por definição só pode ser um pequeno número, e o seu poder, ou antes, a sua autoridade, que vem apenas da sua superioridade intelectual, nada tem em comum com a força numérica sobre a qual repousa a “democracia”, cujo caráter essencial é o de sacrificar a minoria à maioria, e também por isso mesmo, como dizíamos mais acima, a qualidade à quantidade, e, portanto, a elite à massa. Assim, o papel diretor de uma verdadeira elite e a sua própria existência, porque ela desempenha forçosamente esse papel desde que exista, são radicalmente incompatíveis com a “democracia”, que está inteiramente ligada à concepção “igualitária”, quer dizer, à negação de toda a hierarquia. O próprio fundo da idéia “democrática” é o de que qualquer indivíduo vale tanto como outro porque são iguais numericamente, e embora só o possam ser numericamente.

Uma autêntica elite, como já disse, só pode ser intelectual; é por isso que a “democracia” apenas se pode instaurar onde a pura intelectualidade já não existe, o que é efetivamente o caso do Mundo Moderno. Somente, como a igualdade é impossível de fato, e como não se podem suprimir praticamente todas as diferenças entre os homens, apesar de todos os esforços de nivelamento, chega-se, por um curioso ilogismo, a ponto de inventar falsas elites, aliás, múltiplas, que pretendem substituir a única elite real. Essas falsas elites são baseadas na consideração de quaisquer superioridades, eminentemente relativas e contingentes, e sempre de ordem puramente material. Podemo-nos aperceber facilmente disso notando que a distinção social que mais conta no atual estado de coisas é a que se baseia na fortuna, isto é, sobre uma superioridade toda ela exterior e de ordem exclusivamente quantitativa – a única, em suma, que é conciliável com a “democracia”, porque procede do mesmo ponto de vista. Acrescente-se, de resto, que aqueles mesmos que se colocam atualmente como adversários deste estado de coisas, não fazendo intervir qualquer princípio de ordem superior, são incapazes de remediar eficazmente uma tal desordem, se é que não se arriscam mesmo a agravá-la ainda mais, indo sempre mais longe no mesmo sentido. A luta é apenas travada entre variedades da “democracia”, acentuando mais ou menos a tendência “igualitária”, que se encontra, como foi dito, entre as variedades do individualismo, o que aliás vem dar exatamente ao mesmo.

Parece-me que estas curtas reflexões são suficientes para caracterizar o estado social do mundo contemporâneo e, ao mesmo tempo, para mostrar que nesse domínio, como em todos os outros, só há um único meio de sair do caos: a restauração da intelectualidade e, por conseqüência, a reconstituição de uma elite que atualmente deve ser encarada como inexistente no Ocidente, porque não se pode dar esse nome a alguns elementos isolados e sem coesão que representam apenas, de certo modo, possibilidades não desenvolvidas. Com efeito, esses elementos, em geral, têm apenas tendências ou aspirações, que os levam sem dúvida a reagir contra o espírito moderno, mas sem que a sua influência se possa exercer de maneira efetiva. O que lhes falta é o verdadeiro conhecimento, são os dados tradicionais que não se improvisam, e que uma inteligência entregue a si própria, sobretudo em circunstâncias tão desfavoráveis em todos os aspectos, não pode substituir senão muito imperfeitamente e em fraca medida. Não há, então, senão esforços dispersos e que muitas vezes se perdem por falta de princípios e de direção doutrinal; poder-se-ia dizer que o Mundo Moderno se defende pela sua própria dispersão, à qual os seus próprios adversários não conseguem subtrair-se.

Será assim enquanto estes se mantiverem no terreno “profano”, em que o espírito moderno tem vantagem evidente, visto que é esse o seu campo próprio e exclusivo. Aliás, se eles se mantêm aí é porque esse espírito tem ainda sobre eles, apesar de tudo, forte domínio. É por isso que tantas pessoas, embora animadas de incontestável boa vontade, são incapazes de compreender que se deve necessariamente começar pelos princípios, e obstinam-se em gastar as suas forças neste ou naquele domínio relativo, social ou de outro tipo, embora nada de real ou de duradouro possa ser feito nessas condições. A verdadeira elite, pelo contrário, não teria que intervir diretamente nesses domínios nem que se misturar com a ação exterior; ela dirigiria tudo por uma influência inapreensível para o homem comum e tanto mais profunda quanto menos visível fosse. Se pensarmos no poder das sugestões de que falei há pouco, e que, no entanto, não supõem qualquer verdadeira intelectualidade, podemos suspeitar o que seria, com muito mais razão, o poder de uma influência como essa, exercendo-se de maneira ainda mais escondida em virtude da sua própria natureza, e buscando a sua origem na intelectualidade pura. Um poder que, aliás, em lugar de ser diminuído pela divisão inerente à multiplicidade e pela fraqueza que comporta tudo o que é mentira ou ilusão, seria, pelo contrário, intensificado pela concentração na unidade principal e identificar-se-ia com a própria força na verdade.

[1] O que os homens chamam “acaso” é simplesmente a sua ignorância das causas; se o que se pretende, ao dizer que uma coisa acontece por acaso, é afirmar que não existe causa, então a suposição é contraditória em si mesma.

[2]  Basta ler S. Tomás de Aquino para ver que “numerus stat ex parte materiae”.

[3]De uma ordem de realidade à outra, a analogia, aqui como em todos os casos similares, aplica-se estritamente em sentido inverso.

[4] Essa tendência é a que a doutrina hindu chama tamas e que ela assimila à ignorância e à obscuridade: notar-se-á que, segundo o que foi dito acerca da aplicação da analogia, a compressão ou condensação de que se trata é o oposto da concentração encarada na ordem espiritual ou intelectual, pelo que, por muito singular que isso possa inicialmente parecer, é, na realidade, correlativa da divisão e da dispersão na multiplicidade. O mesmo se passa com a uniformidade realizada por baixo, ao nível mais inferior, segundo a concepção “igualitária”, e que está no extremo oposto da unidade superior e principal.

[5] É por isso que Dante coloca a residência simbólica de Lúcifer no centro da Terra, isto é, no ponto onde convergem de todas as partes as forças da gravidade; é, por esse ponto de vista, o inverso do centro da atração espiritual ou “celeste” que é simbolizada pelo Sol na maior parte das doutrinas tradicionais.