24/11/2017

Horacio Cagni - A Influência da História Clássica e da Guerra Antiga no Realismo Político Estadunidense

por Horacio Cagni[1]



Se bem o realismo político - tal como todo ismo - é uma expressão ambígua, no léxico político ele é um conceito central, que apela "ao modo de ser das relações de poder, consideradas independentemente dos desejos e preferências dos atores ou das teorias, mais ou menos explicitamente normativas, dos espectadores". É a realidade, então, a que opõe resistência aos desejos e pulsões subjetivas, uma realidade "que vale, apesar de sua finitude, mais que o desejado ou idealmente imaginado e, portanto, o real também é limite, dor e sofrimento" (Portinaro, 2007:18). Enquanto o realismo político, como o gnoseológico, se retrotrai à realidade - entendida de qualquer modo - , ele atribui a ela um valor positivo. Desnecessário dizer que esta escola de pensamento e de ação se nutre dos grandes ensinamentos da história.

Na atualidade existe a tendência a considerar a política externa da grande potência estadunidense, sobrevivente do mundo bipolar fenecido, como o produto de poderes indiretos que, através dos distintos componentes da constelação de poder, atuam no empíreo internacional com o embasamento puro e exclusivo da força. Não obstante, é fundamental considerar que o realismo político estadunidense, uma escola que, com altos e baixos, há duas décadas marca sua política internacional, tem bases teóricas complexas e firmes. Intelectuais relevantes como Hans Morgenthau e George Kennan antes, e Zbigniew Brzezinski e Henry Kissinger depois - muitos deles europeus emigrados aos EUA -, foram as mentes ocultas por trás do agir político de Washington no mundo. Resulta interessante relembrar outros pensadores, alguns de influência demonstrada na direita norte-americana, e outros, representantes do neoconservadorismo estadunidense atual.


Antecedentes do Realismo Político Estadunidense

Apesar de esta reflexão pretender se centrar em autores mais contemporâneos no tempo, corresponde realizar um esboço sobre os antecedentes do realismo político nos EUA. Às concepções de política internacional de corte idealista, produto em grande medida das terríveis consequências da Grande Guerra, que havia demonstrado de forma desoladora às sociedades mais avançadas até onde podia chegar a violência desmedida, sucedeu, com o segundo conflito mundial e a conseguinte Guerra Fria, um estado mais pessimista na abordagem das relações internacionals que assentou as bases da escola do realismo político nos EUA.

A respeito, Michael Walzer, comentando o atual debate entre realistas, idealistas, pacifistas e cultores da "guerra justa", nos traz um dado interessante: "Na década de 1950 e princípios de 1960, quando eu realizava meus estudos de pós-graduação, a doutrina dominante no campo das relações internacionais era o realismo. O conceito de referência não era a justiça, mas o interesse. A argumentação moral ia contra as regras da disciplina, ainda que alguns autores sustentassem que o interesse, dito em termos de interesse nacional, era a nova moralidade. Quanto aos limites morais, pelo que eu recordo daquela época, ninguém os mencionava". (Walzer 2004:28)

Alguns dos mais conspícuos teóricos dessa escola realista eram europeus emigrados. Hans Joachim Morgenthau (1904-1980) [2] era um alemão de origem judia que fugiu do nazismo e se refugiou nos EUA, sendo professor em Chicago desde 1943. Em 1960 publica uma obra considerada um vademecum do realismo político: Politics among Nations. The Struggle for Power and Peace. Ali formula os seus princípios do realismo político, que constituem a pedra miliar dessa escola. Em síntese: 1) A política é governada por leis objetivas, portanto ela é racional. 2) O traço principal do realismo político é o interesse. 3) O interesse definido como poder é uma categoria objetiva e universal. O poder é o controle do homem pelo homem. 4) O realismo político não é imoral, mas seu objeto de estudo não é a moral. 5) O realismo político não identifica as aspirações morais de uma nação com as leis que governam o universo. 6) O realismo político pressupõe a autonomia da esfera política.

Para Morgenthau, o principal ator da política internacional é o Estado-Nação. Os elementos do poder nacional são: geografia (território); população; recursos naturais; quantidade e qualidade de suas forças armadas, qualidade de governo e da diplomacia. Considera um elemento a mais, "o caráter e a moral nacional". (Morgenthau 1963: 14-29 e 151-203) Resulta significativo que dedique alguns parágrafos ao caráter nacional russo, sem dúvida impressionado com a recente e custosa vitória da URSS sobre o Terceiro Reich. Mas também alertando sobre a entidade do novo rival que os norte-americanos deviam afrontar na política mundial, dado que o desenlace do conflito havia entronizado duas superpotências extraeuropeias, os EUA e a URSS, em um novo confronto que Walter Lipmann denominou Guerra Fria.

Muito antes de Morgenthau, foi George Frost Kennan que aplicou desde o Âmbito estadunidense critérios de realismo político, ainda que não sistematizados, em suas reflexões. Kennan assistiu a muitos vaivéns da política internacional, posto que viveu um século (1904-2005). Especializado no idioma e na literatura russa como membro do corpo diplomático norte-americano em Moscou, seu conhecimento do universo soviético lhe valeu uma categoria mítica como advisor de características quase proféticas. Apesar de ter antecipado que o marxismo era apenas mais um episódio na história universal, em 9 de fevereiro de 1946 enviou a seu governo, desde a Rússia, um extenso telegrama onde alertava: "A política soviética se orientou sempre para um fim último que é a revolução mundial e a dominação do mundo pelos comunistas. Esta política não mudou nunca em relação a isso e, portanto, é possível prever que não mudará no futuro". (Kennan, 1946)

Pouco depois do "longo telegrama", em um artigo que assina como "X", define uma política internacional para os EUA que marcou toda uma época. Dado que a bandeira do antagonismo entre capitalismo e comunismo continuava, para Kennan:

"Vamos seguir considerando difícil negociar com os soviéticos...nessas circunstâncias, está claro que o elemento principal de qualquer política dos EUA em relação à URSS deve ser a longo prazo paciente, firme, mas vigilante na contenção das tendências russas à expansão...aplicando a força que a contra-ataque em uma série de pontos geográficos e políticos" (Kennan, 1947: 566-582)

Assim, nascia a famosa détente. Kennan foi um dos maiores propulsores do Plano Marshall, que rearmou as economias da Europa ocidental contribuindo para levantá-las das ruínas, pensando que isso obrigaria Stálin - que o declarou persona non grata quando era embaixador em Moscou em 1952 - a respeitar esta força reconstruída. Não obstante suas preocupações frente à potência soviética, Kennan discordou da militarização extrema que foi produto da Guerra Fria. Assim como se opôs em seu momento à criação da OTAN, também o fez logo com a corrida armamentista nuclear e com a Guerra do Vietnã. Diferentemente de outros autores que serão tratados nessa reflexão, Kennan, que escrevia poesia, tocava música e escreveu uma biografia de Tchekov, tinha um embasamento autenticamente humanista. [3]

A lucidez e estatura moral de Kennan se reflete no seguinte parágrafo, escrito em plena Guerra Fria:

"Nestes dias de grande preocupação político-emotiva, quando a imagem dos dirigentes soviéticos substituiu a de Hitler em tantos espíritos ocidentais como centro e fonte de todo mal possível, não voltemos a incorrer no erro de que o bem e o mal são totais... Evitemos, no futuro, condenar absolutamente um povo e excusar por completo outros... Nenhum povo, como um todo, é inimigo nosso. Nenhum povo, como um todo, nem mesmo o nosso, é um amigo por completo". (Kennan, 1962:320-321)

Outro dos mentores da realpolitik mais reconhecidos é Henry Kissinger, diplomata, politólogo, catedrático, político e homem de negócios. [4] Em sua tese doutoral, defendida em Harvard em 1955, Kissinger prenuncia sua visão da política internacional. Sua preocupação é a conciliação entre o que é justo e o que é realmente possível; o primeiro depende da conformação de uma nação e das intenções de um Estado, mas o determinante é o segundo, posto que o possível depende da geografia, dos recursos próprios e dos alcances e limites reais do poder nacional-estatal. Sua reflexão se centra na Europa de Metternich, o estadista austríaco que tentou ordenar o continente através da Santa Aliança, logo da desarticulação provocada pelas guerras napoleônicas, e que teve ue enfrentar o desafio da adequação de meios e fins. A Santa Aliança introduziu um elemento de freio moral nas relações interestatais europeias, de modo que ao assegurar a sobrevivência de suas instituições de comum acordo - consolidar uma ordem que freasse a revolução - as grandes potências se evadiram a um conflito que, no século anterior fechado pela empreitada napoleônica, havia resultado habitual. Daí o sugestivo título do livro. (Kissinger, 1973)

O realismo político implica medir as próprias forças e possibilidades. Sabido é que a estratégia de detenção durante o pós-guerra fria adquiriu novos brios com a administração de Richard Nixon. À época, o National Security Advisor do presidente americano, Kissinger, alertou sobre o risco que a sobre-expansão estadunidense representava para sua estratégia global. A Guerra do Vietnã se apresentava como um sintoma alarmante de um problema maior. Era necessário reconhecer que o poder estadunidense, apesar de enorme, tinha limites. Kissinger o admite em suas volumosas Memórias: "nossos recursos não eram infinitos em relação a nossos problemas; devíamos estabelecer prioridades intelectuais e materiais... o grande problema da época era como manejar a emergência da URSS como superpotência". (Cit. por McMahon, 2003: 124) Na prática, reconhecer a realidade da URSS como inimigo potencial principal, levou Nixon a se aproximar à semi-isolada China e reajustar a estratégia estadunidense internacional reforçando a détente.

A pretensão de fazer das Nações Unidas um tipo de "Santa Aliança", com a OTAN como órgão de controle supranacional, até agora se revelou ineficaz. As supostas limitações (quando não a hipocrisia) dessa política norte-americana se manifestaram quase desde o princípio da Guerra Fria. A OTAN se concebeu como um sistema inteiramente defensivo frente a um ataque armado: "uma aliança de paz contra a guerra", quer dizer que não compartilhava as obrigações básicas de uma aliança militar. A respeito disso, Kissinger aponta agudamente: "Em suma, a Aliança do Atlântico, ao não ser realmente uma aliança, podia atribuir a si universalidade moral. Representava à maioria do mundo contra a minoria dos perturbadores. Em certo sentido, a função da Aliança do Atlântico consistia em atuar até que o Conselho de Segurança das Nações Unidas tivesse tomado as medidas necessárias para restaurar a paz e a segurança". (Kissinger 1995: 447)

Sabemos pela evidência empírica o que significou essa concepção atlantista: a conversão da política mundial em "polícia mundial", com a demonização do adversário, reduzido a um gângster internacional, e o emprego de uma força corretiva de segurança, que atua em nome da "humanidade" para alcançar uma ordem moral internacional. Mas que, na realidade, defende os interesses das potências aliadas tuteladas pelos EUA, assim como dos poderes indiretos subjacentes, como há tempo explicou Schmitt em suas contribuições ao direito internacional. (Schmitt 1979: 426-427)

O próprio Kissinger não escapa à notória evidência documental de que sua defesa dos interesses de Washington implicou situações significativas de violação dos direitos humanos. Mais além do Vietnã, está sobre o tapete sua atuação no Bangladesh, Timor e, principalmente, no apoio a regimes ditatoriais que violaram os direitos humanos e cometeram crimes, como no caso do Chile, Argentina e outros países latino-americanos. (Hitchens, 2002) Está claro que Kissinger poderia bem contestar Morgenthau: o interesse se define como poder, acima da moral.

Leo Strauss e a Releitura de Tucídides

Leo Strauss (1899-1973) foi um pensador notável. Emigrado em 1938, como tantos outros intelectuais, da Alemanha hitlerista para os EUA, se especializou em filosofia política e no estudo de seus grandes expoentes - Platão, Maquiavel, Hobbes, Spinoza, etc. -, com o que chegou a se transformar em um referente de alguns dos mais conspícuos representantes da política externa estadunidense. Já se escreveu em nosso meio hispanófono um excelente esboço da influência filosófia de Strauss na direita americana (Hernando Nieto, 2005: 75-92), de forma que nos limitaremos ao resgate straussiano do historiador grego - por outra parte um reconhecido clássico - Tucídides (460-395 a.C.) e a época que lhe coube viver.

É sabido que a vitória da Grécia sobre a Pérsia a longo prazo desembocou em um conflito entre as cidades-Estado gregas, particularmente entre Esparta e Atenas, conhecido como a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), e que foi narrada por Tucídides, contemporâneo e ator desses acontecimentos, que era não só um homem reflexivo mas - como general de sua nativa Atenas - também de ação. Como militar, narra de maneira clara e descritiva os acontecimentos bélicos; como historiador, assenta as bases de uma história racional e metódica, muito distanciada do mito homérico.

Tucídides apresenta a Guerra do Peloponeso, criando a possibilidade de relações contínuas com outras anteriores, como as de Troia e as realizadas contra a Pérsia. Sua influência chega até nossos dias, conservando uma vigência incrível, como demonstram os especialistas. A atualidade de Tucídides se baseia em seu critério realista sobre o leadership e o statemanship, e suas ações subiram nas últimas décadas, produto da reflexão acadêmica - e jornalística de alto nível - sobre o fim da pós-guerra fria, a emergência de conflitos assimétricos e a validade dos argumentos esgrimidos pelos atores das relações internaiconais. "Tucídides é ubíquo ainda agora, tanto em relação com a Guerra Fria como depois...enquanto que seu relato em relação ao choque entre duas alianças políticas rivais ressoou muito forte duas décadas atrás, o que agora ressoa fortemente é sua forma de conceber as relações entre democracia e Império" (Shanske, 2007:21).

Para Strauss, "de alguma maneira se poderia pensar que a leitura realista de Tucídides era o complemento necessário da filosofia política. A abstração da República platônica podia ser superada pela descrição da guerra e pela identificação dos envolvidos que encontrávamos em História da Guerra do Peloponeso, com o que podíamos contar também com a presença do plano empírico e histórico" (Hernando Nieto 2005: 87).

Strauss faz referência explícita a Tucídides no curso de sua análise do oitavo livro da República de Platão: "o exagero de Sócrates sobre a brandura da democracia clássica...como se a democracia ateniense não tivesse se envolvido em uma sangrenta orgia de perseguição a culpados e inocentes quando as estátuas de Hermes foram mutiladas no começo da expedição à Sicília" (Strauss, 1977: 132). O fato alude às mutilações dos Hermes - pilares quadrangulares de mármore com a cabeça do deus, que protegiam entradas de casas e templos - em uma só noite. As autoridades atenienses atribuíram o delito, cometido por jovens bêbados, a uma conspiração para derrubar a democracia, e acabaram perseguindo e aprisionando qualquer cidadão sob a menor delação infundada (Tucídides, 1967: vi, 27-29). Strauss começa alertando, desse modo, sobre os excessos em que até uma democracia pode cair em tempos de exceção, como uma guerra.

As cidades gregas, durante a Guerra do Peloponeso, viram radicalmente afetadas as suas maneiras de julgar e atuar, pois - seguindo Tucídides - "o desejo de poder e de honrarias, mais o ardor que se apodera dos homens pelas rivalidades de partido, é a origem de todos os males... por causa das guerras civis se levaram a cabo na Grécia toda classe de maldades" (Tucídides, 1967: III, 82-83). Strauss ressalta que "essas maneiras se converteram em todo sentido em depravadas. A depravação se demonstrou no abandono das formas habituais de louvor e reprovação, tanto como nas formas comuns de atuar. De tal modo que triunfou plenamente o espírito de ousadia sobre a moderação". Continua Strauss: "a depravação causada pela guerra civil, como uma praga causada pelo homem, se parece com a depravação da própria peste (de Atenas)...depravação é, acima de tudo, destruição da moderação" (Strauss, 1977:147). Do mesmo modo que Carl Schmitt, Strauss deplora o fato funesto da Bürgerkrieg, uma guerra no interior da unidade política, pensando quiçá nas grandes guerras civis europeias de 1914-18 e 1939-45, tornadas conflitos planetários.

Tucídides - chega a afirmar Strauss - tem juízos favoráveis em relação a Esparta, porque vê nela melhores premissas de moderação, justiça e piedade, próprias de uma sociedade austera, em contraste com uma Atenas onde a nobreza colapsou e a população se rendeu aos prazeres do momento. "O fato de que sob Péricles, ou graças a Péricles, Atenas chegara a ser mais poderosa, não prova que sob ele, ou graças a ele, chegou a ser melhor". (Strauss, 1977: 152)

Se os especialistas em antiguidade clássica consideram, em geral, que com Tucídides, pela primeira vez, os fatos falam por si mesmos, não deveríamos então desacreditar de seu relato. Desde o princípio da guerra intergrega, com a repressão de Corcira, se revela a perversão do sacro em prol dos interesses facciosos, caindo na iniquidade e na ilegalidade. "O termo violação das leis se aplica aos que sendo malvados não o são por uma força maior, e não aos que, por causa de circunstâncias desgraçadas, incorrem em algum atrevimento" (Tucídides, 1967: IV, 98).

O argumento central da direita americana remete à citação de Tucídides: às vezes é necessário atuar com violência e vulnerar os direitos humanos - os campos de concentração e interrogatório como Abu Ghraib e Guantánamos - infligindo um mal "menor" como preservação contra um mal "maior". É uma justificação da doutrina da "guerra preventiva", que em nome da perseguição de uma orgem internacional mais justa - como missão salvífica diante dos rogue states - esconde uma clássica política de poder e predomínio.

Mas Tucídides esclarece - e Strauss ressalta - que o abamdono do sacro não conduz, como Péricles pensava que sucederia, ao alcance total do bem comum, ao invés conduz à dominação do privado. O que sucedeu no século V a.C. em Atenas, pode ser aplicado às guerras do Vietnã, do Afeganistão e do Golfo; o predomínio dos poderes indiretos que fazem negócios com o conflito sob a vestimenta de objetivos humanitários: "é o petróleo, estúpido", diz Donald Rumsfeld ao jornalista que indagava sobre as razões da intervenção no Iraque.

A visão do imperialismo em Tucídides é matéria de controvérsia entre os especialistas. Há duas opiniões a respeito. Uma sustenta que Tucídides foi um firme opositor do imperialismo, pois, apesar de ter começado como entusiasta defensor do expansionismo ateniense, mudou de opinião ao ver o caráter tirânico e os excessos dessa democracia, como no caso da ilha neutra de Melos e da expedição à Sicília. A outra tese afirma que Tucídides entendia que Atenas necessitava de um Império para ser livre, mas as demandas que este logro demandava fizeram com que a democracia ateniense se convertesse em abertamente tirânica, em contradição com seus mais elevados princípios. Desse modo, a "alma universal" de Atenas - expressada em sua filosofia - não pôde se reconciliar com as necessidades práticas do Império (Gustafson, 2000: 119). Strauss é dessa opinião. (Strauss, 1977: 226)

Em todo caso, ambas aproximações coincidem em um aspecto: Tucídides é um pessimista. O grego assume as mais altas expressões da vida política - bem comum, moderação, justiça - mas admite que não se podem reconciliar com as demandas de uma ordem política imperial. E o evidencia a própria experiência da democrática Atenas. Um agir que desemboca inevitavelmente na hybris, a conquista, a dureza, a ousadia, incorrendo no excesso, a transgressão de toda legalidade e, finalmente, na decadência e ruína do próprio poder político ateniense. Em poucas palavras: "Para Tucídides esta visão da vida política não era apta para o fracasso, senão estava destinada ao fracasso" (Zumbrunnen, 2008: 15).

Seja dito de passagem, para Strauss existe um contraste entre dois pessimistas como Tucídides e Maquiavel. O grego jamais põe em questão a superioridade intrínseca da nobreza de seus embasamentos e pontos de partida. No florentino "se pode encontrar paródia ou sátira, mas nada que remeta à tragédia, e não a há em Maquiavel porque não tem o sentido da sacralidade do comum" (Strauss, 2012).

Os mentores do realismo político estadunidense, particularmente os neocons, conhecem bem os ensinamentos de Tucídides, e aceitam as contradições entre os postulados internacionais de ordem com justiça de uma democracia forte, e a realidade do agir planetário de uma grande potência com interesses globais a defender. É fundamental esclarecer que os neoconservadores americanos se diferenciam dos conservadores clássicos em que não sentem nenhuma nostalgia pelo passado, e assumem o presente em sua realidade radical. Um de seus maiores representantes, Irving Kristol, sustentou que "o texto favorito dos neoconservadores sobre política externa, graças aos professores Leo Strauss, de Chicago, e Donald Kagan, de Yale, é A Guerra do Peloponeso, de Tucídides" (Kristol, 2003: 2). É sintomático, pois provém de um dos responsáveis do "programa dos Estados Unidos para um novo século", onde propõem a "hegemonia global benévola", já que "o triunfo na Guerra Fria e a esmagadora vitória sobre o Iraque põem os Estados Unidos em uma posição desconhecida desde que Roma dominou o Mediterrâneo" (Kristol-Kagan, 1990: 1).

Muitos críticos do governo anterior do presidente George Bush afirmaram que vários membros importantes de sua administração são discípulos de Strauss, e que a doutrina da hegemonia benévola - com sua segunda intenção de "reformar democraticamente" o mundo inteiro - está aparentada com seus ensinamentos. Inclusive Strauss foi acusado de ser um admirador inconfesso de Adolf Hitler e do progressismo wilsoniano. Estes parecem exageros. A posição de Strauss é muito prudente, e a diferença que faz entre Tucídides e Maquiavel não é um dado menor. Certamente, Strauss também é um pessimista: "A ideia de Estado universal, unitário e federativo é uma utopia - sustenta - cada nação deve conduzir sua própria política externa e não sob uma organização supranacional...alição da Guerra Fria é que a sociedade política segue sendo o que sempre foi, uma sociedade parcial cujo objetivo primário é sua preservação e seu mais elevado objetivo seu melhoramento" (cit. West, 2004).

Intencionalmente ou não, essas afirmações de Strauss não estão distanciadas das outras mentes com as mesmas inquietudes, como no caso de Robert Kaplan e Donald Kagan, que também se refletem em Tucídides.

Robert Kaplan reencontra a Antiguidade

Produtos de seu tempo, quer dizer do grande avanço das comunicações massivas, os intelectuais e conselheiros do governo e das forças armadas estadunidenses são muito mais midiáticos. No caso de Robert D. Kaplan - nascido em Nova Iorque em 1952, no seio de uma família de origem judia - une sua condição de jornalista e correspondente de guerra com o estudioso da história de épocas antigas. Correspondente do Atlantic Monthly, suas contribuições para dito meio, assim como para The Washington Post, The New York Times, The New Republic, The National Interest, The Wall Street Journal e Foreign Affairs o catapultaram como um dos mais influentes "criadores de opinião" estadunidenses. O pensamento de Kaplan não é alheio a seu conhecimento da realidade internacional in situ, posto que não é um simples teórico [5].

Kaplan não só é considerado um doutrinário do american way of war and policy das últimas décadas. Em realidade, suas contribuições vinham desde antes, mas foi com os republicanos no poder e o recrudescimento dos conflitos no empíreo internacional posteriormente ao 11 de setembro quando alcançou seu zênite. Contrariamente ao que se possa supôr do advento do presidente Barack Obama e dos democratas, sua influência não decresceu nestes dias de crise econômica e política globalizada.

Viajante incansável e de percepção aguda, Kaplan escreveu numerosas obras referentes aos teatros de operações que cobriu como correspondente de guerra. Primeiro esteve na guerra entre Irã e Iraque em 1984, um conflito extremamente sangrento, e logo se dirigiu a lugares que a sociedade internacional considera pouco menos que exóticos. Sua reflexão sobre a fome na Etiopia - seu primeiro livro Surrender or Starve: The Wars behind the Famine - de 1988, demonstrou seu interesse pelas cuasas complexas dos processos sociais, onde a geografia é um elemento decisivo. Essa preocupação pelos aspectos geográficos e seu condicionamento do agir político o levou, muito depois, a revalorizar as escolas geopolíticas clássicas. Seu artigo "A Vingança da Geografia", enfatiza a atual fragilidade das fronteiras políticas e a permanência daquelas baseadas em elementos geográficos concretos. DEfinitivamente, isso já por si só o aproxima às teses dos pensadores clássicos. Foi Augusto, que ao não poder dominar as tribos germânicas além do Reno, aconselhou seus sucessores a não ultrapassar as linhas geográficas naturais: mares do Norte, Vermelho e Cáspio, rios Reno e Danúbio, desertos do norte da África e Síria (Petit, 1976: 13-16).

Em 1993 Kaplan publica Balkan Ghost, onde explica que os conflitos nos Bálcãs respondem a ódios ancestrais e faturas não-pagas acumuladas por séculos. Diz-se que sua leitura convenceu o presidente Bill Clinton a intervir na questão da Bósnia contra a Sérvia. Desde então, o jovem jornalista passou a ter uma influência crescente a nível governamental. Em Viagem aos Confins da Terra, realiza um relato vívido de suas experiências através da África, Turquia, Ásia Central, Irã, Índia e Sudeste Asiático. Observações como as que realiza sobre o país persa, assinalando que, enquanto o sionismo criou uma nova linguagem falada - o hebraico - e mudou o aspecto e forma de vestir das pessoas, no Irã a cultura urbana sofisticada anterior apenas foi afetada pela revolução islâmica, demosntra sua agudeza (Kaplan, 1998: 270-271).

No inverno de 1975-76, Kaplan realizou uma detalhada viagem por Túnis por por outros países da bacia mediterrânea. Ali recordou o conflito entre Roma e o rei númida Jugurta (112-105 a.C.). O rei era, na realidade, aliado dos romanos, mas tinha suas próprias ambições, pretendendo um poder autônomo na área. Jugurta era um bom conhecedor do país, um guerreiro hábil e astuto, e sabia aplicar táticas de guerrilha, de modo que a força expedicionária romana enviada para "corrigi-lo" foi derrotada. O conflito é muito bem descrito por Salústio, que - segundo Kaplan - tem "um estilo austero e elegante, longe dos textos acadêmicos que me hvia visto obrigado a consumir na universidade".

De forma resumida, "naquelas paragens remotas, jamais conquistadas pela língua latina, Roma travou uma dessas impiedosas campanhas de contrainsurgência com as quais estão familiarizadas todas as grandes potências". Somente mediante a traição de um aliado menor, que o aprisionou e enviou a Roma, onde foi executado, pôde Jugurta ser vencido. A semelhança com alguns aliados "díscolos" de Washington é evidente, e a conclusão de Kaplan é esclarecedora:

"Com o correr dos anos observaria traços de Jugurta em Manuel Noriega, Saddam Hussein, Osaba bin Laden e outros que puseram sob suspeita a atitude imperial dos EUA. Jugurta havia acreditato equivocadamente que Roma, com uma política usualmente torpe e ambivalente, com uma classe governante corrupta e debilitada por partidarismos, não reagiria contundentemente se seus interesses fossem ameaçados" (Kaplan, 2004: 65-67).

Definitivamente, um chefe político de um país, por mais reprovável que seja, pode ser um aliado protegido ou o líder de um rogue state, segundo permaneça ou não a serviço do Império.

No inverno de 1975-76, Kaplan realizou uma viagem detalhada por Túnis e Sicília. Na ilha italiana se deteve no Templo de Segesta, o qual "induziu meu primeiro contato com A Guerra do Peloponeso, de Tucídides, que analisava a mal-fadada invasão ateniense da Sicília". Siracusa era então simpatizante de Esparta, que "estava envolvida em um conflito bipolar com Atenas pelo controle do arquipélago".

Como Siracusa ameaçava à cidade-Estado de Leontina, aliada de Atenas, esta enviou vinte barcos de apoio, mas dois anos mais tarde teve que enviar mais quarenta, convencida de decidir assim a guerra. "Com sua intervenção vacilante, Atenas havia conseguido tão somente amealhar ódio contra si na Sicília". A expedição ateniense teve um desenlace calamitoso: "Haviam transcorrido catorze anos desde a primeira incursão de Atenas na Sicília até o desastre definitivo - conclui Kaplan - a mesma quantidade de anos que se mediu entre as primeiras incursões da administração Kennedy e a retirada definitiva do presidente Ford de Vietnã" (Kaplan, 2004: 114-125). Retenha-se que a viagem de referência foi realizada quase simultaneamente com a estrepitosa evacuação norte-americana de Saigon, pelo que as analogias com o quinto século anterior a Cristo resultam evidentes.

Tucídides persegue Kaplan. Em outra viagem, dessa vez pelo interior de seu país, ele encontra em Montana um professor de Harvard, que se refere à Guerra do Peloponeso: "tendemos a pensar que podemos modificar os acontecimentos, mas Tucídides demonstra que não podemos controlar as forças básicas da natureza humana, e isso por causa do poder destrutivo do conflito de interesses, para não mencionar as limitações geográficas e outras, assim que nossas possibilidades de influir nos acontecimentos é limitada..." (Kaplan, 1999: 383).

Mas é em sua obra Soldiers of God (1990), onde Kaplan começa a demonstrar seu interesse pela história antiga. Nos anos 80, o jornalista do The Atlantic Monthly viveu com os mujahideens, os "soldados de Deus", que enfrentavam bravamente a invasão soviética. Claro está que, então, os talibans eram aliados dos Estados Unidos na última, mas intensa fase da Guerra Fria. A reflexão de Kaplan é elogiosa daqueles homens que combinavam a mais primitiva luta com o armamento mais sofisticado, que guerreavam sob a mais dura e rigorosa doutrina islâmica, que afrontavam o exército terrestre mais poderoso do planeta, conjuntamente com ferozes conflitos tribais e divisões étnicas e religiosas insoluveis. Em uma edição ampliada de 2000, Kaplan reconhece na introdução que uma projeção da importância do Talibã e seu verdadeiro objetivo era, então, imprevisível, e que ele era ainda um escritor "jovem e imaturo" (Kaplan, 2001: 16). Em sua passagem pelo Afeganistão, pensa que não muitas coisas mudaram em essência desde a expedição de Alexandre Magno, de cujo nome sob forma árabe, Iskander, deriva o nome da cidade de Kandahar, que é um sítio arqueológico helenístico onde um exército regular estava dentro de um perímetro fortificado rodeado de guerrilhas, como nos tempos de Alexandre - o relator se refere ao exército soviético e à guerrilha afegã dos anos 80 do século passado (Kaplan, 2001: 96, 194 e 219).

Indubitavelmente, Kaplan leu e esteve em contato com historiadores especialistas no mundo antigo, como Donald Kagan e Victor Davis Hanson, assim como com o reconhecido historiador militar John Keegan. Todos eles foram sacudidos pelo 11 de setembro de 2001 e pelo atentado de Nova Iorque. Já Kaplan havia alertado em seu artigo "The Coming Anarchy", publicado no Atlantic Monthly em fevereiro de 1994- uma edição ampliada do artigo viu a luz como livro em 2000 - que o icnremento da população e a progressiva escassez de recursos provocariam uma grande fragilidade nos governos dos países subdesenvolvidos, que repercutiriam de maneira negativa e crescente no mundo desenvolvido. Nesses momentos de pós-guerra fria, Kaplan começou a ser considerado e lido junto a Francis Fukuyama e Samuel Huntington.

Mas depois do atentado em Nova Iorque, publica Kaplan a obra que mais interessa nessa reflexão, O Retorno da Antiguidade, onde reconhece que a leitura dos clássicos o ajudou a compreender melhor suas próprias experiências, abrindo a ele uma nova perspectiva sobre a própria época e os lugares conhecidos. "Os sete anos que passei na Grécia e as longas viagens à Sicília e à Tunísia - reitera - me puseram em contato próximo com a História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, e Aníbal contra Roma, de Tito Lívio" (Kaplan, 2002: 24).

Kaplan parte do conceito de que conflito e comunidade são inerentes à condição humana. Resgata o discurso do general George Marshall na Universidade de Princeton em 22 de fevereiro de 1947: "Um homem não pode pensar com pleno conhecimento e profundas convicções as questões internacionais de hoje sem ter pelo menos revisado mentalmente o período da Guerra do Peloponeso e a queda de Atenas". Kaplan considera que estas reflexões deveriam ser um manual para presidentes e secretários de Estado, pois "a história antiga...é a guia mais fiável do que provavelmente enfrentaremos nas primeiras décadas do século XXI" (Kaplan, 2002: 43). Também valora explicitamente o escrito do jovem Winston Churchill, The River War, sobre a empreitada colonialista do imperialismo britânico na África, pois obedece às normas gerais do realismo político. Churchill apoia as intervenções militares se forem estrategicamente proveitosos, se estiverem dentro das possibilidades nacionais, e se tiverem em conta não só os recursos dos inimigos mas também os aspectos geográficos. Tal como os historiadores antigos da Grécia e de Roma, Churchill sabe que uma nação próspera deve lutar para não se enfraquecer, pois, como dizia Salústio, ela deve ter mundos a conquistar e rivais a destruir.

Kaplan considera que deve insuflar este espírito na nação americana. Ao comentar Tito Lívio sustenta que este advertia sobre perigos e crises que seus compatriotas não previam.

"Aníbal contra Roma mostra uma versão antiga de patriotismo: o orgulho pelo próprio país, seus estandartes e insígnas e seu passado. Lendo Tito Lívio, entendemos o motivo pelo qual nos EUA o fato de exibir a bandeira no Dia dos Caídos e no 4 de Julho é um ato virtuoso e o motivo pelo qual o orgulho nacional é um requisito prévio para uma política externa churchilliana".

Este parágrafo é importante porque demonstra até que ponto o autor reconhece a inspiração do historiador antigo, mas também sua dívida com a cosmovisão atlantista.

A Segunda Guerra Púnica apresenta, então, semelhanças com a Europa do século XX e os dois grandes conflitos mundiais. A vitória de Roma é equiparável à dos EUA, pois ambas se converteram em potências universais (como ocorre com a maioria dos estudiosos norte-americanos, Kaplan nem considera o papel da URSS no desenlace da Segunda Guerra Mundial). Aníbal, grande condutor, mas impiedoso e violento, "apresenta elementos de um Hitler da era pré-tecnológica... como ele, estava amargurado pela paz imposta e injusta de uma guerra anterior". A batalha de Cannae apresenta Roma como o Reino Unido logo após Dunquerque, e "aristocratas rooseveltianos" enfrentavam a política contemporizadora de Roma enquanto "provincianos isolacionistas" negavam a guerra, como os EUA em 1940/41. Kaplan escreve palavras de tom épico, mas instrutivas: "a história de Tito Lívio pode mostrar quão heroicas podem parecer essas batalhas dentro de uns milênios, quando as gerações futuras serão inspiradas por nossos triunfos sobre o fascismo e o comunismo, tal como Lívio nos inspira a nós com seu relato da vitória de Roma sobre Cartago" (Kaplan, 2002: 64-68; 73).

Mais sintomático ainda é a análise que faz Kaplan de Tucídides. Para ele A Guerra do Peloponeso é também uma obra emblemática das relações internacionais, quando assinala com realismo que o "foco persistente" do ateniense era o "interesse próprio": este "dá origem ao esforço, e este a opções, o que faz de sua história, escrita há 2.400 anos, um corretivo para o fatalismo extremo fundamental do cristianismo medieval e do marxismo" (Kaplan, 2002: 85).

Desse modo, Kaplan chega ao objetivo fundamental de sua reflexão: que os líderes políticos e homens de iniciativa devem transtornar, em suas decisões públicas, a moral judaico-cristã por uma moral pagã, quer dizer, substituir uma moral dos meios por outra dos fins. A importância de Tucídides radica em que, apesar de pretender ser exato e, na medida do possível, imparcial como historiador, ao mesmo tempo ele não aspira apenas a relatar, mas também a valorizar este período de quase trinta anos de história grega que ele viveu como protagonista. Suas próprias memórias pessoais, unidas ao tratamento de uma grande documentação, o distinguem de Heródoto no sentido de se apresentar como um pensador político. Em primeiro lugar, destaca os fatores humanos na gênese e evolução dos fatos históricos; mas ademais, seu estilo, de grande intensidade poética, transcende a retórica para se converter em um veículo de transmissão do drama humana que margeia o épico.

Há alguns aspectos de Tucídides fáceis de resgatar pelos expoentes do pensamento da direita estadunidense. Um Império não pode ser frouxo: "não se dão conta de que vosso Império é uma tirania sobre gentes que urdem intrigas e estão dominados contra sua vontade, gentes que não obedecem pelos favores que lhes façais em prejuízo próprio, mas pela superioridade de vossa força e não sua amizade" (Tucídides, 1969: III, 37). Portanto, o mais forte impõe sua vontade, porque busca unicamente sua conveniência. E isso está na própria essência do homem, um ser que jamais se contenta com o que tem e pretende ter cada vez mais. Ao se referir aos sicilianos sustenta: "não obstante, se dominantes a estes, poderemos mantê-los submetidos, enquanto que sobre aqueles outros, ainda que os dominássemos, dificilmente poderemos imperar sendo tantos e tão distantes", discursa Nicias (Tucídides, 1969: VI, 11). O grego nos ensina que a conduta humana é guiada pelo próprio interesse, pelo temor e pela defesa da honra; não muito distinto pensará Maquiavel, outro dos favoritos de Kaplan.

Para o assessor norte-americano, a guerra do Peloponeso é um jogo de alianças muito complexo, de equilíbrio delicado como eram os atores dentro dos blocos da Guerra Fria, com uma tomada de decisões muito difícil, dado que as variáveis a contemplar eram tão numerosas e complexas como as que afronta o presidente dos EUA. Em semelhante conflito, os neutros também são vítimas. O que ocorre a Melos é sintomático: a ilha era neutra e militarmente vulnerável, mas sua posição no Egeu era estratégica, e assim ela foi tratada injustamente. Não obstante, a frágil ilha defende sua honra e, após uma prolongada guerra, os atenienses vencedores matam os mélios varões e escravizam as mulheres e crianças. "A triste vitória dos atenienses sobre Melos, cegos pelo conceito elevado que tem de si mesmos, é um prelúdio do desastre militar de Atenas na Sicília, similar ao dos EUA no Vietnã... Tucídides nos ensina que a civilização reprime a barbárie, mas jamais pode erradicá-la" (Kaplan, 2000: 85, 89-90). Certamente, pode-se afirmar, mais uma vez, que a experiência ateniense é uma prova de que as democracias podem ser tão belicosas e imperialistas quanto as autocracias, e essa é uma lição histórica para os EUA.

Tucídides apresenta a ação contra os mélios, não só como produto do imperialismo ateniense, mas como resultado de uma evolução: agora Atenas renuncia a justificativas ideológicas e históricas de seu poder; seu argumento será somente a força. A respeito disso, um especialista assinala: "a falta de poder dos atenienses significaria sua própria destruição, a do demos, que tem que evitar sua própria destruição com o exercício da tirania". O mesmo ocorre com a expedição à Sicília: "um modo de exercer o poderio do demos ateniense, mas também veículo para o exercício da tirania sobre este mesmo demos por parte daqueles que este tem que colcoar à frente de suas campanhas" (Plácido, 1997: 89). A conduta de Washington logo após o 11 de Setembro é sintomática: já não recorrerá a argumentos de tipo ético, mas à ação nua do poder. Inclusive no fronte interno foram violados alguns dos mais caros valores democráticos, em nome da segurança nacional e da "guerra mundial contra o terrorismo".

Tucídides distinguia entre duas causas das guerras: as ofensas e os motivos profundos. A rivalidade de poder - como o caso de Atenas e Esparta - é uma constante da história, que os escritores neocons que nos ocupam tem bem presente. O 11 de Setembro pode ser uma ofensa evidente (como o foi Pearl Harbour em 1941), mas as causas profundas se encontram simples e claramente na política de poder entre potências rivais, pelo domínio de mercados, posições geopolíticas ou o controle de recursos estratégicos escassos.

A Guerra do Peloponeso segundo Donald Kagan

Diferentemente de Kaplan, Donald Kagan é um historiador veterano com uma vida muito interessante e que conta com uma formação teórica muito sólida [6]. Conta com uma grande reputação como historiador do mundo antigo e da cultura clássica, em particular Grécia durante a Guerra do Peloponeso, sobre a qual realizou um exaustivo estudo em quatro tomos [7]. Independentemente de seu trabalho como historiador, Kagan se integrou ativamente à gestão universitária em Yale, destacando seu papel de ativista conservador nos debates no campus. Contrário ao multiculturalismo, defende a ideia da preeminência da civilização ocidental, e sua obra referencial, The Western Heritage, registra várias reedições desde 1979.

Paulatinamente, Kagan se converteu em uma figura emblemática dos neoconservadores norte-americanos e um dos "falcões" da política externa de Washington. Seus filhos Robert e Frederick são conspícuos escritores neocons; o primeiro cofundador do Project for a New American Century, e o segundo é um historiador militar renomado, que sugeriu ao presidente George Bush o plano "cirúrgico" contra o Iraque. Em 1997, Donald Kagan assinou o Projeto para o Novo Século Americano, junto com egrégios representantes da linha dos falcões, entre eles Irving Kristol, Donald Rumsfeld, Dick Cheney, Paul Wolfowitz e Lewis Libby. Quando aconteceu o 11 de Setembro, Kaplan apoiou as bases da política da "Nova Ordem Internacional" do presidente Bush, contribuindo com seu aporte à obra Present Dangers - uma antologia de escritos editada por seu filho Robert junto com William Kristol - incitando os EUA a assumirem sua responsabilidade em todos os teatros de operações: Oriente Médio, Sérvia, Coreia do Norte, etc.

Considerado a máxima autoridade na Guerra do Peloponeso, o catedrático de Yale incorre em um lugar comum entre os grandes historiadores: extrapolar o passado para o presente para assim compreendê-lo melhor. Esta operação intelectual tem luzes e sombras, e não cerece de riscos, pois a pretendida objetividade do estudioso da história pode sucumbir ao inconfesso propósito de criar consciência ou opinião em relação a temas que tem um conteúdo filosófico e político evidente.

Kagan apresenta a guerra intergrega como uma pretérita "guerra fria", onde Esparta representaria a URSS totalitária e Atenas uma democracia ocidental em crise, resultando inegável a referência velada aos EUA, cuja aparente decadência preocupa o historiador. Kagan reconhece na introdução de seu vasto estudo, que a Guerra do Peloponeso influenciou os especialistas para iluminar a Grande Guerra e ajudar a compreender melhor suas causas. Mas acrescenta que "sua maior influência como ferramente analítica é possível que tenha se dado durante a Guerra Fria que dominou a segunda metade do século XX, e que assim mesmo presenciou um mundo dividido em dois grandes blocos... da mesma maneira as condições que conduziram à guerra na Grécia eram a rivalidade existente entre a OTAN e o Pacto de Varsóvia" (Kagan, 2009: 8). Quiçá se poderia rastrear alguma influência de Karl Popper e sua clássica distinção entre Esparta e Atenas como modelos contrapostos, e a afirmação de que Platão está na própria gênese do totalitarismo comunista e fascista. Mas não há que se esquecer que a vasta obra de Kagan foi escrita em plena Guerra Fria e no auge do bipolarismo [8].

A paz ratificada em 445 a.C. entre Atenas e Esparta assegurava o equilíbrio entre ambos rivais, pois reconhecia a hegemonia ateniense no mar e espartana na terra. Mas a constante batalha entre as colônias ultramarinas pôs a prova dita paz e as duas potências garantidoras. Tera, Mitilene, Corcira, Samos, Corinto, etc., são os nomes periféricos que punham em xeque o poder concertado entre as duas cidades-Estado rivais. Esta forma de competição de poder, frágil diante dos problemas da periferia imperial, era comum entre os Impérios nos anos anteriores à Grande Guerra, que Kagan projeta deliberadamente até a Guerra Fria e logo os rogue states ("Estados Párias").

O que resulta claro é que a derrota de Atenas foi o resultado da crise interna e da queda do sistema democrático e do espírito de seus cidadãos, que o tremendo conflito e suas consequências havia posto à prova. Esta é a preocupação de Kagan. A união entre Esparta e o Império Persa - o chamado à vastidão da Ásia - unida às lutas intestinas da democracia ateniense, permite a vitória sobre Atenas, já exausta, que assim perdeu para sempre sua hegemonia no mundo antigo, logo após ter alcançado o zênite na política, no pensamento e nas artes.

Ainda que a análise de Kagan se centre, obviamente, no legado de Tucídides, e geralmente apoia suas conclusões, algumas vezes dissente com o mestre. Particularmente no que concerne a desastrosa expedição ateniense que invade a Sicília em 415 a.C., Kagan argumenta, contra Tucídides, que a expedição não constituía em si uma estratégia ruim, mas que ela não teve sucesso pela falta de liderança e vontade do general ateniense Nicias. "Um empreendimento limitado e prudente se converteu em uma arriscada expedição de grande envergadura, mal concebida e planejada... sem a intervenção de Nicias, os atenienses teriam ido à Sicília em 415 a.C., mas não teria sido criada a conjuntura de que se embarcassem rumo à catástrofe" (Kagan, 2009: 154). Quando Alcibíades foge e deixa o mando para Nicias, Kagan critica nele a prudência excessiva na campanha frente a Siracusa, mais o erro estratégico de não utilizar a cavalaria, que conduzirá ao fracasso do cerco da cidade e, depois, levará à derrota ateniense. Nicias apresentava a realidade mais sombria do que ela era. "Atenas segue sendo superior nos mares, e tampouco existiam provas de que estivesse sem provisões...a responsabilidade recaía sobre a liderança letárgica, descuidada e demasiado crédula de Nicias" (Kagan, 2009: 162 e 172).

Tucídides qualificou a aventura como um erro cometido por uma democracia sem rumo e mal dirigida, mas não culpa Nicias, fazendo até mesmo um panegírico dele. Para Kagan ele é o grande responsável. Relembra que um condutor, como assinalava Tucídides, deve ser um heroi, mas também inteligente como Péricles: "A inteligência, pela consciência de superioridade que dá, torna mais firme a audácia, estando neutra a sorte e confia menos na esperança, cuja verdade é indemonstrável, e mais no raciocínio, que é a base de uma previsão mais segura" (Tucídides, 1969: II, 62).

Se tem comparado a expedição ateniense à Sicília de 415 a.C., com a britânica a Galípoli em 1915, ou com a intervenção norte-americana no Vietnã nos anos sessenta e setenta do século passado. Certo é que a campanha da Sicília se converteu para os ateniense em um pântano, tal como o Vietnã, o Iraque ou o Afeganistão para os estadunidenses. Kagan tem uma razão oculta para reafirmar que a invasão da Sicília não era uma ideia absurda mas um problema de condução ineficaz, e é a justificativa, por meio da Guerra do Peloponeso, das operações militares estadunidenses em longas distâncias, como foi a do Vietnã (e Afeganistão e Iraque depois).

Mas o próprio Tucídides esclarece a dificuldade que é entrar em um conflito de proporções em um terreno desconhecido, do qual não se tem um reconhecimento adequado: "Os atenienses tomaram a decisão de se dirigirem novamente à Sicília com maiores forças do que as que haviam ido...e conquistá-la se possível, pois a maioria deles desconhecia a extensão da ilha e quão numerosos eram seus habitantes gregos e bárbaros, assim como que se comprometiam em uma guerra de importância não muito menor que a que mantinham com os peloponesios... eu não posso indicar a sua raça (originária), nem de onde vieram ou para onde foram, baste o dito pelos poetas e o que cada qual creia sobre eles" (Tucídides, 1969: VI, 1). Se os comandos políticos e militares norte-americanos tivessem feito caso desse parágrafo de Tucídides - e do caráter moderado de Nicias, que nunca quis ir à Sicília - quiçá tivessem sido mais prudentes para darem início à aventura de mais de dez anos no Vietnã. 

Afirmações e Paradoxos do Realismo Político Norte-Americano

Outros autores, menos conhecidos mas igualmente importantes e interessantes, próximos ao pensamento da direita americana, também se remetem à Guerra do Peloponeso. É o caso do historiador militar Victor D. Hanson - nascido em 1953, descendente de imigrantes suecos - neocon partidário da administração Bush tanto quanto da de Obama na política externa, o qual chegou a propor um ataque preventivo contra o Irã [9]. Em uma obra muito posterior ao 11 de Setembro, analisa a Guerra do Peloponeso dizendo que por suas características - o papel do terror e a natureza "assimétrica" do conflito - foi "uma guerra como nenhuma outra" (Hanson 2005a). O historiador americano não pretende estabelecer analogias e comparações com a realidade contemporânea - como o fazem Kaplan e Kagan - mas apela ao leitor sério para que reflita não só sobre aquele conflito distante, mas também sobre a natureza da guerra em geral.

Não é mister nos aprofundarmos nessa obra, pois não interessa nessa reflexão uma aproximação especificamente militar ao conflito do Peloponeso. Mas as estatísticas de Hanson obrigam à reflexão. Sustenta que os atenienses estimaram um total de perdas na guerra similar às norte-americanas na Segunda Guerra Mundial, consideradas atualmente em 400 mil, quer dizer que em termos proporcionais, é como se os EUA tivessem perdido 44 milhões, ao redor de 1/3 da população de então. Isso não só demonstra quão catastrófica foi a guerra intergrega, como também a incrível capacidade de recuperação das cidades-Estado nas décadas seguintes. 

O que interessa muito mais é outra obra de Hanson, pelas conotações políticas e ideológicas que implica. Seguindo a escola que coloca os primórdios da civilização ocidental na Grécia e em Roma, se apoia em Tucídides para afirmar sua tese de que o Ocidente foi a civilização mais exitosa perante os conflitos. Por exemplo, assinala que o general espartano Brasidas desprezava a capacidade militar das tribos ilírias e macedônicas que se enfrentavam aos hoplitas espartanos, pois eram povos onde as minorias governam às maiorias: a disciplina das cidades-Estado, governadas por uma Constituição, contrastava com os caóticos povos tribais do norte.

Hanson faz referência a que em Atenas há "cidadãos livres", que "vivem exatamente como desejam" - glosando Tucídides - enquanto que no exército persa só a elite gozava dessa liberdade. Em Salamina, não só se derrotou aos persas como se salvou o Ocidente. Hanson remarca especialmente que Péricles recordava a seus cidadãos "as vantagens militares inatas que oferece sua economia de mercado...pois a guerra mais que uma questão de armas é de dinheiro" (Hanson, 2006: 22; 73, 77; 305). A frustrada e frustrante expedição a Siracusa faz Hanson refletir, buscando analogias. A Sicília era um teatro de operações totalmente novo e distante, que obrigava Atenas a enfrentar uma potência que não a havia atacado diretamente; foi uma estratégia equivocada.

"Não é de estranhar, como assinalava Tucídides, que os cidadãos atenienses perderam impulso perante a contínua chegada de notícias sobre o estancamento da situação e a necessidade de enviar mais homens e material. Em qualquer sociedade, antiga ou moderna governada pelo consenso, se erguem vozes de protesto quando as operações ultramarinas são gravosas economicamente e em vidas humanas, sem que se vislumbre uma eventual vitória. Neste sentido, o aumento dos protestos contra a guerra do Vietnã dentro dos EUA era previsível. As discordâncias na própria metrópole estão em consonância com a história". (Hanson, 2006:450)

Certo é que as sociedades geridas por consenso, como no caso de Atenas - Hanson segue Tucídides - vão perdendo sua moderação e civilidade em guerras prolongadas e debilitantes. O que parece lamentar é que a era eletrônica tenha democratizado as imagens da guerra de tal forma, que sua recepção nos lares norte-americanos de modo quase imediato e sem censura, tenha contribuído a minar o fronte interno. Assim, conclui arbitrariamente: "na longa história das guerras, o Vietnã foi o conflito mais difícil que o Ocidente enfrentou...essa estranha propensão à autocrítica, ao controle civil e à crítica popular das operações bélicas, essa liberdade de réplica pode afetar as operações militares" (Hanson, 2006: 458-482). A mesma opinião ele tem ao criticar os reparos de Brzezinski frente à política externa de Bush: "há um pessimismo que está em moda, considerar que tudo está perdido, que Abu Ghraib e Guantanamo são provas de nossa brutalidade e nos fazem perder simpatias em todo o mundo...e que a guerra do Afeganistão segue se prolongando...não se faz mais que ampliar os supostos abusos e torturas...quando as coisas na verdade seguem bem..." (Hanson, 2005 b).
A tese final de Hanson é que o legado da Grécia, antes que sua capacidade teórica ou real, é o sentido de individualidade, o critério racional e a capacidade de disciplina que gera o pertencimento a um Estado organizado. Por isso, o Ocidente tem sido a civilização com aptidão mais destrutiva, pelas qualidades psicológicas e pela maneira de ser frente ao inimigo do homem ocidental. Particularmente, a melhor combinação de individualidade, coragem e disciplina, Hanson a coloca nas democracias. Por mais que se reconheça a capacidade técnica e o valor dos inimigos da democracia - como os kamikazes japoneses na Segunda Guerra Mundial e os pilotos argentinos no conflito das Malvinas - a ordem, organização e consenso das democracias terminarão triunfando sobre autocracias e ditaduras, segundo Hanson. É fácil inferir que a herdeira de Atenas será, finalmente, os EUA, e seus inimigos serão os mesmos, os persas e outros atores da Ásia Menor.

Acreditamos que a extensão do termo "Ocidente" à cultura clássica, só por existir uma herança filosófica e jurídica, deve no mínimo estar sujeita a cautela. O homem antigo tem uma perspectiva do tempo e do espaço diferente do Ocidente construído desde o medievo. Por outro lado, nem sempre o Ocidente de Hanson cumpriu seus objetivos militares, triunfando sobre seus inimigos. Salvo a expedição de Alexandre, que se retirou sem ocupação efetiva do terreno, não pôde nenhuma potência ocidental dominar o glacis eurasiático. Não há que olvidar que Roma jamais conseguiu fechar a fronteira oriental, e no século III o imperador Juliano morreu na tentativa. A experiência das tropas ocidentais no Afeganistão e Iraque não demonstra o contrário. Não se pode violar a lei dos grandes espaços (Cagni, 2006: 47-72).

Ademais, se as democracias, na medida em que conjugam indivíduo, consenso e disciplina, são as mais exitosas, não se consegue compreender por que algumas das tropas mais disciplinadas e melhor conduzidas e equipadas, como as napoleônicas e as do Terceiro Reich, pertenciam a Estados autocráticos. Se a URSS stalinista, por sua composição não era um Estado totalmente ocidental, a ocidental Alemanha ainda assim não pôde derrotá-la. Caso contrário, se o era, é sabido que a vitória aliada sobre o Reich na Segunda Guerra Mundial não teria sido possível sem a quota de sangue e material da URSS. Estas reflexões apontam para demonstrar os riscos de uma leitura parcial e enviesada de Tucídides, acentuando uns aspectos em detrimento de outros.

Por outra parte, voltando a Robert Kaplan, este insiste em que a intervenção é necessária ali onde há que defender interesses nacionais. As Forças Especiais (US Special Forces) - as quais ele acompanhou em vários teatros de operações e das quais é assessor - são unidades de elite, homens adequados para orientar os acontecimentos políticos de um país determinado. Dá-se o exemplo dos espartanos, quando mudaram os ventos da guerra ao enviarem uma pequena missão, bem conduzida por Gilipo, o que evitou que os siracusanos, aliados de Esparta, se rendessem aos atenienses e, ao romper o bloqueio de Siracusa, animaram as demais cidades sicilianas a segui-la, contribuindo assim para a derrota naval de Atenas no ano seguinte (Kaplan, 2007: 54).

Como se viu, existem em Kaplan e em Kagan - ainda que não tão explícito em palavras - uma forte preocupação com insuflar princípios épicos às forças armadas, aos políticos e homens de opinião estadunidenses. Eles tem a convicção de que uma democracia é mais resistente a entrar em guerra, mas que se ela entra ela tem a tendência a continuar lutando até o final. A experiência frustrada do Vietnã primeiro, e a situação irresoluta no Iraque e no Afeganistão depois, indicam - e Kaplan o reconhece - que os norte-americanos não estão habituados a aceitar um estado de guerra permanente. A dispersão de forças, e o fato até agora irrefutável de que a tecnologia sozinha não basta para ocupar o terreno, demonstram quão difícil é vencer e dominar um povo disposto ao autossacrifício extremo.

Diante dessa realidade, resulta insuficiente a última proposta de Donald Kagan e seu filho Frederick, como adiantaram conspícuos mentores intelectuais da direita neocon estadunidense. Em uma vasta análise historiográfica, que também é ideológica, sustentam que os desafios à política externa de Washington não acabaram ao fim da Guerra Fria. A paz mundial depende do escoramento da política de segurança nacional norte-americana, pois a política de poder é uma constante necessária. Fazem comparações com a política da Grã-Bretanha entre as duas guerras mundiais, alertando que a desmobilização quase leva a Inglaterra à ruína e à derrota no segundo conflito mundial. O apelo aos EUA é evidente: não repetir estes erros e seguir aumentando os gastos de defesa, para terem uma maior presença militar no planeta e equipamentos e armas cada vez melhores.

"Os usos possíveis do poder militar dos EUA - afirmam - podem preservar a estabilidade global. A presença em ultramar e a projeção do poder podem ajudar a conter a violência ali onde os interesses americanos são questionados. Em algumas circunstâncias as forças (norte) americanas podem conformar missões de manutenção da paz...operações em larga escala, como uma Causa Justa, são justificadas se elas protegerem o interesse estadunidense". (Kagan, D. e Kagan, F., 2000: 304)

A obra dos dois Kagan, Por que a América dorme, faz alusão tácita à de John F. Kennedy, Por que dormia a Inglaterra, escrita em 1940 e cujo tema é a desmobilização e desarmamento do Reino Unido frente a Alemanha. Para quem logo se tornou presidente dos EUA, "a escassez de armamentos na Inglaterra tornou inevitável a rendição de Munique, e isso é o que resulta objeto de crítica, não o pacto em si...até que ponto esta atitude negativa na questão dos armamentos foi culpável da política pacifista de Neville Chamberlain. De modo que, levando em conta a situação curiosamente parecida com que a América do Norte terá que se deparar, estudemos a história do rearmamento britânico. A Inglaterra cometeu muitos erros e agora ela os está pagando caro" (Kennedy, 1965: 20). Para os Kagan, estar em dia na produção e no aperfeiçoamento do armamento asseguram uma situação de prevenção e predomínio que permite que os Estados Unidos não se encontrem jamais em uma situação de debilidade como a Inglaterra perante o Terceiro Reich.

Donald Kagan sustenta que os EUA e seus aliados, apesar de serem os atores mais interessados em preservar a paz e com mais poder para concretizá-lo, não parecem estar dispostos a pagar o preço em dinheiro e no custo de vidas. "As pessoas mais enérgicas e livres de uma nação ainda poderosa, não permitirão que a ordem mundial se destrua e corra perigo a sua segurança, pelo que rechaçarão qualquer liderança que se disponha a fazê-lo" (Kagan, 2003: 497-498).

A respeito disso, vale citar um autor já clássico:

"Bastava, talvez, para Atenas aceitar sinceramente uma repartição de influências com Esparta, reinando uma nos mares e a outra na terra, para que a história da Grécia e talvez do mundo fosse distinta. Mas essa era uma fórmula inadmissível para a cidade da qual Tucídides disse um dia, em um momento de franqueza, que era a eterna insatisfeita... É coisa provada que não existe nenhum governo que rechace como indigna a tentação do imperialismo. Mas também é verdade que um governo democrático sucumbe a ela mais facilmente que qualquer outro". (Cohen, 1961: 77 e 83)

A história apresenta invariantes. O critério do realismo político, a política de poder nas relações internacionais, a posse de recursos estratégicos escassos, o predomínio econômico, o orgulho nacional. Mas também os erros estratégicos, a desmesura e a húbris, a soberba que destroi também são causa de autodestruição. Por isso, a história segue sendo a mestra por excelência.

Notas

1 - Cursou estudos de Doutorado em Ciência Política e de Mestrado em Sociologia das Relações Internacionais em Buenos Aires e de Especialização em Política Internacional em Barcelona. Professor de pós-graduação no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Nacional de Três de Fevereiro. Investigador do CONICET.

2 - Às vezes confundido com o Secretário do Tesouro dos EUA, Henry Morgenthau Jr., autor do infeliz plano para fragmentar e desindustrializar a Alemanha uma vez terminada a Segunda Guerra Mundial.

3 - O Prêmio Pulitzer 2012 foi concedido ao especialista em Guerra Fria e professor de Yale, John Lewis Gaddis, por sua biografia George F. Kennan. An American Life, Penguin, New York, Nov. 2011, 798 pgs. Há trinta e cinco anos que uma obra de não-ficção não ganhava esse prêmio. Veja-se a resenha de Henry Kissinger em The New York Times. Sunday Book Review, Nov. 10/2011.

4 - Heinz Alfred "Henry" Kissinger nasceu na Alemanha em 1923, em uma família alemã de origem judia, que logo após a ascensão do nazismo se refugiou em Nova Iorque. Durante a guerra mundial foi mobilizado, e nos últimos momentos do conflito designado para operações de inteligência e contraingeligência na Alemanha. Retornado à vida civil realizou um Ma. e um Ph.D em Harvard entre 1952 e 1954. Membro importante do Council of Foreign Relations e da Rockefeller Fund., chegou a ser National Security Advisor e Secretary of State nas presidências de Richard Nixon e Gerald Ford. Prêmio Nobel da Paz em 1973, ainda que seu maior poder ele o teve entre 1969 e 1977 sua influência continua até hoje.

5 - Logo após conseguir um BA., em Inglês na Universidade de Connecticut, começou a viajar por diversos pontos do globo. Serviu no exército israelense e foi repórter de vários meios de comunicação. O mais relevante é que Kaplan se converteu em um dos consultores favoritos das Forças Especiais do Exército Americano, dos Fuzileiros Navais dos EUA e da Força Aérea dos EUA. Como professor convidado, foi palestrante no FBI, na NSA, no Pentágono e na CIA. Desde 2001 sua carreira tem estado em franca ascensão, logo depois do atentado às Torres Gêmeas do 11 de Setembro e ser apresentado ao presidente George W. Bush. Ganhou o Greenway Award for Excellence International Reporting em 2001, o U.S. State Department Distinguished Public Service Award e, desde 2008, é sênior no Centro para Segurança Americana, em Washington. Desde 2009 é adjunto do Departamento de Defesa. 

6 - Nascido na Lituânia em 1932, de família judia, com dois anos de idade emigrou após o falecimento de seu pai, estabelecendo-se no Brooklyn, em cuja universidade conseguiu um BA., realizando logo um Ma. na Brown University, para se doutorar finalmente na Universidade de Ohio em 1958, com uma especialização em História Antiga. Desde 1960 ensinou em Cornell, mas o ativismo estudantil dos anos da guerra do Vietnã, as revoltas da população de cor e a ação dos pacifistas levou este "liberal-democrata" a posturas cada vez mais direitistas. Em 1969 deixou Cornell e foi para Yale, onde ainda atua como professor. O tema da violência e do conflito o marcaram desde pequeno, pois afirmaria: "quando caminhava à escola, tinha a preocupação de ser atacado, e isso algumas vezes acontecia". Yale Alumni Magazine, April 2002, dedicado a Kagan.

7 - The Outbreak of the Peloponnesian War (1969); The Archidamian War (1974); The Peace of Nicias and the Sicilian Expedition (1981) e The Fall of Athenian Empire (1987). Em 2003 realizou um excelente resumo do essencial de sua obra, o que foi traduzido para o espanhol e editado na Espanha: La Guerra del Peloponeso, Madrid 2009, cuja edição digital foi utilizada neste artigo.

8 - Os quatro volumes foram editados entre 1965 e 1987, quer dizer, foram sem dúvida pensados e escritos ao longo de bastante tempo.

9 - Hanson se especializou em guerra antiga, mas suas reflexões alcançam o presente. Se doutorou em história clássica em Stanford, onde é professor, tal como na Universidade da California. De fé protestante e também granjeiro, é colunista habitual - entre outros - do National Review, do The Wall Street Journal e do The New York Times. Recebeu inúmeras distinções e é um personagem influente na opinião pública de seu país.

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